I. Salvação integral
As doutrinas de Deus, da Criação, do ser
humano, do pecado, de Cristo e da salvação, entre outras, estão diretamente
relacionadas com uma compreensão bíblica a respeito da missão holística —uma
abordagem equilibrada e integral da missão que causa transformação física,
mental, social, espiritual e bem-estar à pessoa e à sua comunidade (Wagner
Kuhn, Christian Relief and
Development, p. 4).
O conceito de salvação tem fortes
conotações religiosas e missiológicas, já que o testemunho missionário é guiado
pela visão salvífica de Cristo. O Dicionário
de Teologia da Missão ressalta
que a “visão de salvação
provavelmente seja o determinante mais crítico para decidir nossa abordagem da
missão” (verbete “Salvação”).
Na Bíblia, vários termos são associados
com a ideia de salvação. Um deles é a palavra grega sozo, traduzida geralmente por “salvar”. No
entanto, o conceito de salvar, nesse contexto, é bem mais abrangente, incluindo
resgate, restauração, perdão e cura—mais do que o aspecto espiritual. Por
exemplo, a Bíblia diz que o leproso foi salvo (Lc 17:19) assim como o cego
Bartimeu (Mc 10:52), o homem da mão ressequida (Mc 3:4 e 5) e o homem
endemoninhado (Lc 8:36).
Esse é mais um testemunho de que Deus está
interessado em corrigir a devastação do pecado e seus efeitos sobre a
humanidade. A visão de que o ser humano é uma unidade inseparável (diferente da
visão da filosofia grega) é essencial para a compreensão bíblica e implica no
fato de que não é possível restaurar apenas um aspecto (espiritual, por
exemplo) sem se atentar para as outras necessidades (físicas, por exemplo).
Em relação à missão, isso significa que
não podemos divorciar a dimensão vertical da horizontal, a reconciliação com
Deus da reconciliação com os Seus filhos e filhas. As duas dimensões não são
idênticas, mas estão conectadas (Mt 6:14-15).
A história do povo de Deus é marcada por
esse princípio. Logo após o pecado, Deus interveio provendo todas as
necessidades de Adão e Eva, incluindo roupas de pele de animais (Gn 3:21).
Assim, as leis e instruções do Antigo Testamento demonstram a providência para
as diferentes necessidades (dos pobres, viúvas, doentes, estrangeiros, etc.)
incluindo a observância do sábado, o ano do jubileu e o conceito de shalom. No Novo Testamento,
percebe-se a continuação desse princípio, com seu apogeu no ministério de
Cristo (em mais detalhes a seguir).
Apesar de isso não significar que aqueles
que aceitam Cristo não sofrerão fisica, mental ou espiritualmente enquanto
esperam a transformação final (glorificação), existe uma bênção para a vida
agora, que é um sinal do reino e uma antecipação da salvação final em Cristo.
Portanto, a missão é fiel às Escrituras
somente quando cruza fronteiras com a intenção de alcançar pessoas que, sob a
atuação do Espírito Santo, terão sua vida transformada em todas as dimensões,
de acordo com o propósito de Deus, sendo capacitadas para desfrutar vida plena.
De forma geral, quatro princípios são
muito pertinentes a esta explanação:
1) A mensagem do evangelho é um todo. Talvez seja importante lembrar que as
boas- novas do evangelismo não são simplesmente uma série de proposições, mas
acima disso uma revelação sobre a pessoa de Jesus e um convite a um
relacionamento com Ele.
2) A integridade do convite evangelístico
inclui apresentar Jesus como o Salvador que perdoa os pecados mas também como o
Senhor ao qual é preciso se submeter incondicionalmente.
3) De forma especial, um dos aspectos da
conversão, a santificação, é um processo para a vida toda.
4) Aquele que apresenta o evangelho deve ser
sensível às necessidades específicas daqueles que o recebem.
II - Cristo, o modelo
O modelo encarnacional do ministério de
Cristo é o exemplo para Seus seguidores. Todos os eventos da Sua missão apontavam
para a missão integral que buscava a salvação integral. O amor a Deus acima de
todas as coisas e ao próximo como a si mesmo foi o princípio maior modelado
pelo Salvador. Na cruz, o ministério da reconciliação com Deus e com o próximo
através do autossacrifício alcançou seu apogeu. A ressurreição de Jesus como as
primícias dos que dormem (1Co 15:20) é a garantia de uma nova criação e de vida
eterna.
Jesus anunciou um evangelho que era, ao
mesmo tempo, boas-novas espirituais, sociais, emocionais e físicas dentro do
contexto do plano da salvação (Mt 9:35). O texto de Lucas 4:18-19 é apontado
como o da inauguração do ministério de Cristo na Terra. Jesus claramente
aplicou lições do evangelho que desafiaram as posições na sociedade dos pobres
e dos ricos, das crianças, dos leprosos, das mulheres em geral, das
prostitutas, das lideranças políticas e das estruturas de poder. Mas vale
lembrar que Jesus frustrou alguns por não ter sido um revolucionário social no
sentido esperado.
A declaração de missão da Igreja
Adventista estabelece como padrão o tríplice ministério de Cristo: ensino,
pregação e cura. “A comissão
de Jesus Cristo nos motiva a levar outros a aceitá-Lo como seu Salvador pessoal
e a se unir à Sua igreja. Também nos faz nutri-los na preparação para Sua vinda
iminente. Isso está na essência da missão da igreja e é realizado através dos
ministérios da pregação, ensino e cura”
O livro Beneficência Social, de Ellen G. White, é um manual, muitas vezes negligenciado, sobre esse
assunto. Veja um dos conselhos: “Em simpatia e
compaixão, devemos ministrar aos que estão em necessidade de auxílio,
procurando com fervente altruísmo aliviar as dores da humanidade sofredora.
Empenhando-nos nesta obra seremos grandemente abençoados. Sua influência é
irresistível. Por ela, corações são conquistados para o Redentor. A promoção
prática da comissão dada pelo Salvador demonstra o poder do evangelho” (Ellen G. White, Beneficência Social, p. 117).
A versão da grande comissão encontrada em
João 17:18 e 20:21 enfatiza o fato de que os cristãos são enviados como Jesus,
para seguir Seu exemplo (Lc 9:2).
III-Missão integral
A definição de testemunha dada no
comentário da primeira lição diz que esta “é alguém que, por explicação ou
demonstração, dá evidência visível ou audível daquilo que tem visto ou ouvido
sem se alterar pelas consequências dessas ações”. Este é o momento de enfatizar
a palavra “demonstração”.
Essa demonstração, conforme foi sugerido,
pode ser uma consequência da proclamação, uma ponte para ela ou uma parceira
dela (Encountering Theology of Mission, p. 140). No entanto, em muitos casos
essas demonstrações ocorrem até mesmo antes da proclamação. Bryant L. Myers
ressalta que a Bíblia lista várias situações em que a proclamação verbal a
respeito do evangelho aconteceu após uma demonstração pelo estilo de vida que
levou pessoas a um questionamento. Foi o caso do sermão de Pedro no dia do
Pentecostes, o testemunho de Pedro perante o Sinédrio e o testemunho de Estêvão
(Walking with the Poor, p.
210).
Portanto, além do ir e pregar existe a dimensão do viver e contar. “Algo acontece que torna as pessoas
cientes de uma nova realidade e, portanto, surge a questão: ‘Qual é a
realidade? E a comunicação do evangelho é a resposta dessa pergunta” (Lesslie
Newbigin, The Gospel in a
Pluralist Society, p.
133).
O cristianismo que perdeu sua dimensão
vertical perdeu seu sal, e é não somente insípido em si, mas inútil para o
mundo. Mas o cristianismo que usar a dimensão vertical como um meio de escapar
da responsabilidade pela vida e na vida comum dos homens é uma negação da
encarnação da vida de Deus pelo mundo manifestada em Cristo (Encountering Theology of Mission, p. 133). O evangelismo não pode ser privatizado nem
interiorizado: ele tem efeitos sociais (Encountering Theology of Mission, p. 144).
Quando se entende que essas ações são
parte integrante do evangelho, parece que até a discussão sobre fé e obras (Mt
5:16, Tg 2:14-26), que faria parte da explicação, deve ser relegada a
segundo plano. No contexto escatológico, Mateus 25 pode ser apontado como a
nota tônica da relação entre a missão e a salvação.
Espera-se que a vida comum da igreja molde
a sociedade. Como alguém sugeriu, a
vida da igreja é a palavra evangelística em carne e osso (Ronald J. Sider, One-Sided Christianity, p. 178). Quando a igreja se torna uma
demonstração visível do evangelho que prega, já apresenta um testemunho forte
(Pv 29:7).
Não se pode incorrer no erro de pensar que
a escatologia seja uma esperança histórica fundamentada primariamente no poder
de mudança social (Encountering Theology of Mission, p. 132). O Evangelho não é meramente
uma ética social (David Bosch, Transforming
Mission, p. 507).
Um dos perigos é achar que os cristãos são
eximidos das suas responsabilidades sociais pelas bênçãos recebidas em longo
prazo, como consequência, por aqueles que adotarem as prioridades bíblicas e um
estilo de vida segundo o povo de Deus.
Outro perigo é polarizar o evangelho com
uma abordagem dualística que separa a proclamação do estilo de vida e
vice-versa e as necessidades dos seres humanos em espirituais e materiais. A
compreensão holística sobre a missão é muito importante para manter o
equilíbrio na abordagem evangelística e no testemunho. Ela ajuda a entender que
“o evangelho de Cristo não é
um evangelho social, como alguns defendem, mas a salvação não pode ser pregada
num vácuo sem se considerar as necessidades temporais das pessoas” (Wagner Kuhn, Christian Relief and Development, p. 134).
O Pacto de Lausanne diz que a
evangelização e o envolvimento sociopolíticio são parte do dever cristão e de
forma equilibrada afirma que “ambos
são expressões necessárias de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de
nosso amor por nosso próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo. ... Quando
as pessoas recebem a Cristo, nascem de novo em Seu reino e devem procurar não
só evidenciar, mas também divulgar a retidão do reino em meio a este mundo
injusto.”
Como ressalta Érico T. Xavier, o foco da
missão adventista é o ser humano integral (Teologia de Missão Integral, p. 184). Desde o seu princípio, a
igreja adventista adotou uma estrutura que possibilita a missão integral
através dos seus hospitais, escolas, casas publicadoras, orfanatos, etc. A esta
altura, talvez tenha ficado mais fácil entender o por quê de a obra
médico-missionária ser chamada de braço direito da causa de Deus no Espírito de
Profecia (Beneficência Social, p.
122).
IV - Meu estilo de vida
Apesar de roupas, em alguns contextos,
identificarem o papel e o status das pessoas, a principal maneira de se
reconhecer um pescador, um camponês, um soldado, não era pelas roupas que
vestiam, mas pelo estilo de vida. O mesmo é verdadeiro em relação aos cristãos.
Às vezes, pensamos que existem duas opções: testemunhar ou não
testemunhar. Isso não é verdadeiro. Embora
meu estilo de vida envolva aspectos exteriores (modéstia cristã, roupas) e
disciplinas espirituais (hábitos de devoção), ele não está restrito apenas a
isto. Deve incluir, de forma prática, meu amor pelo próximo. Como a lição
apontou, quando o testemunho verbal não encontra eco em demonstrações de amor
ao próximo, a credibilidade do evangelho é seriamente afetada.
Uma grande acusação contra o cristianismo
hoje é de ineficácia. Uma importante pesquisa feita nos Estados Unidos com
jovens (16 a
29 anos) apontou que existe uma barreira formada pela percepção que muitos têm
sobre os evangélicos. Os entrevistados
descreveram essas pessoas, entre outras coisas, como hipócritas, fora de
contato com a realidade, insensíveis, rápidas em julgar os outros (David Kinnaman, UnChristian, p. 28).
As pessoas sentem que alguma coisa está
errada se todo o interesse do evangelista por elas se resume a que elas se
conformem com as crenças da igreja e sejam batizadas, quando elas também têm
necessidades em outras áreas. Por isso é importante a sensibilidade na hora de
usar palavras como campanha, cruzada evangelística, ganhar almas, missão, etc.
Obviamente, um modo de não ter que se
preocupar com as necessidades dos outros é simplesmente permanecer na sua
“bolha” ou, como Richard Stearns chama, “spa espiritual”. Uma igreja que existe somente entre quatro
paredes não pode ser considerada igreja. O modelo missionário da igreja de
Cristo claramente envolve o ato de ir às pessoas, por mais que isso não seja
natural para o ser humano.
A lição lembrou de uma metáfora que a
Bíblia usa para o cristão: uma carta ao mundo. Entre outras comparações, como a
do sal e da luz, ainda tem a do perfume. A influência do cristão deve ser
exercida dentro e fora da igreja; dentro e fora de casa.
Algumas
das sugestões de Bryant L. Myers sobre como testemunhar incluem:
1) Viver vida eloquente;
2) Ter uma mente humildemente crucificada
(a mente de Cristo);
3) Reconhecer as impressões digitais de
Deus no mundo;
4) Buscar a Deus em comunidade; e
5) Compartilhar aquilo que você crê com
compaixão.
Ilustração
Em 1948, um evangelista americano estava terminando uma série de pregações na
Ásia. Antes de voltar para casa, ele pregou numa escola missionária na China e,
como de costume, convidou aquelas crianças a entregar o coração a Jesus. Jade,
uma menina que aceitara o convite, ao retornar para sua casa naquela noite,
contou aos pais que havia se tornado cristã. Eles ficaram bravos e ela apanhou
do pai que, ainda, a deserdou e a expulsou de casa.
Na manhã seguinte, a diretora da escola
encontrou Jade chorando em frente ao portão. Quando o evangelista passou pela
escola, a diretora trouxe a menina e disse: “Jade fez o que você falou para ela
fazer, e agora ela perdeu tudo o que tinha!”
O evangelista perguntou: “O que você vai fazer?” A diretora respondeu que
já dividia seu prato de arroz com outras seis crianças e retrucou: “A pergunta
é o que você vai fazer.”
Talvez não devêssemos nos preocupar apenas em trazer pessoas para a
igreja, mas em estabelecer a igreja no mundo.
Deveríamos nos preocupar com as mudanças que o mundo pode trazer para a
igreja, mas também como a igreja pode mudar o mundo.
Nossa oração diária deve ser “Que meu coração seja quebrantado pelas coisas que quebrantam o coração de
Deus” (Bob Pierce).
Autor deste comentário: Pr. Marcelo E. C.
Dias Professor do SALT/UNASP Doutorando
(PhD) em Missiologia pela Universidade Andrews mecdias@hotmail.com
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