domingo, 4 de setembro de 2011

Em espírito e em verdade (comentário ao estudo nº 11)





A adoração ao verdadeiro Deus, pelas características próprias que essa atitude manifesta, principalmente quando se define o lugar em que esse sentimento é expresso, pode ser dividida em dois períodos:  Vetero testamentário e Neotestamentário. No primeiro período indicado, o lugar de adoração era o Tabernáculo, mais tarde, o Templo de Jerusalém. No segundo período, a exclusão do Templo como lugar de adoração permite que o sentimento de reverência ao Ser divino seja expresso em espírito e em verdade.

A construção do Tabernáculo, na travessia do deserto e na posse da terra de Canaã, seguida pela grandeza arquitetônica do Templo de Jerusalém, teve o propósito divino de ser habitação de Deus.  Ali a presença do Ser supremo se manifestava para promover a purificação do povo, principalmente quando o sumo sacerdote atuava como intercessor. Como distinção da terra ocupada, era reconhecido pelo povo de Israel como lugar de santidade. Ali eram renovadas as benéficas promessas da aliança. Era o lugar em que se revelava o sacrifício do Redentor mediante a morte cruenta do cordeiro sem defeito. Em suma, era o lugar da revelação divina para conceder ao povo a salvação esperada.

No período Neotestamentário, Cristo cumpre as funções pelas quais o Templo havia sido erguido. Ele é a mais autêntica revelação de Deus. Seu nome, Emanuel, dá clara prerrogativa ao seu significado “
Deus conosco”. Sua voz, o toque das Suas mãos, as marcas das Suas pisadas deixam o selo da Sua santidade. Seus ensinamentos projetam à vida eterna, todas as promessas da aliança. Acima de tudo, Ele é o Redentor aguardado, consumado com o derramamento do Seu sangue na ignominiosa morte no Calvário. Seu papel histórico em favor da humanidade continua, como intercessor diante do Pai celestial. Assim, Cristo na Sua missão terrena, substitui o Templo; ou melhor, Ele é o próprio Santuário (Jo 2:19-21).

O Templo vetero testamentário cumpriu o papel que lhe fora designado. Não mais é necessário contemplar seu solo umidificado pelo escorrer do sangue do cordeiro, degolado para redimir o pecador. Não mais é preciso manter o símbolo da augusta presença divina para promover as grandes celebrações ritualísticas anuais. Toda essa função apenas tipificava a missão de Cristo na Terra. O Templo, agora inexistente, deixa de ser o lugar de adoração; começa um novo período em que os adoradores exprimem esse sentimento, em espírito e em verdade.

ADORAÇÃO E SERVIÇO

O vocábulo sagad, no hebraico bíblico, é o termo mais frequentemente traduzido como adorar.  Literalmente, essa palavra é um verbo que significa “curvar-se até o chão”. A semântica do termo indicado reflete uma atitude de humilde submissão e reverência diante da presença de Deus; sendo ampliado por outras expressões da pessoa humana, relativas à adoração, como: respeito, consternação, temor, honra, acatamento, dar glória, louvor, exaltação, obediência, tributo, etc.

A atitude de “adorar” não se restringe simplesmente a uma forma ou posição corporal que o adorador deve assumir. Segundo o contexto bíblico, a adoração pode ser expressa mediante duas atitudes pessoais: uma estática, e outra, dinâmica. A atitude estática da adoração é aquela na qual o adorador restringe seus movimentos corporais à expressão mínima, como nos momentos de oração, meditação, leitura da Palavra, momento de ouvir a mensagem, consagração, louvor, etc. A atitude dinâmica da adoração é representada pela gama de atividades de relacionamento do adorador com Deus e com seus semelhantes. Nessa conduta assumida pelo adorador, o relacionamento é de obediência e serviço.

A relação da atitude de adoração com o serviço efetivo é íntima, ao ponto de o adorador depositar sua vontade na dependência da vontade do Ser que recebe adoração. Essa relação  é demonstrada na narrativa bíblica, na forma interpretativa de adoração exigida pelo tentador à pessoa de Jesus. O jejum prolongado de Jesus deixou Seu corpo no extremo da fraqueza física, e qualquer tentativa de sublimar essa situação seria uma oportunidade de vida. O tentador, conhecedor da condição humana de Jesus à qual estava submetido, procurou com argumentação e objetividade, que Jesus ouvisse seu apelo e concordasse em cumprir seu insinuante desejo. Finalmente, ele mostrou a Jesus a vasta diversidade de grandes impérios, onde o poder e a riqueza afloram em níveis elevados e descritos em graus superlativos. Tudo seria da posse do justo Galileu, se tão somente ELe cumprisse a exigência do tentador, de receber adoração de Cristo ajoelhado diante dele (Lc 4:6, 7).

A resposta de Jesus, mesmo estando no limite da resistência da Sua natureza humana, foi imediata e fulminante: “
Ao Senhor, teu Deus adorarás e só a Ele darás culto” (Lc 4:8). No contexto do Antigo Testamento, render culto a uma entidade superior leva a conotação de serviço (Dt 11:16; Sl 97:7; Dn 3:12). Assim, a atitude de adorar adquire a ação reflexiva de servir a quem é tributada essa adoração. Quem serve a deuses estranhos, representados por figuras de materiais corruptíveis, torna-se servo deles, agindo de maneira também estranha, em rituais e comportamento social improcedente. A adoração ao verdadeiro Deus envolve uma atitude de serviço real, colocando a vontade do adorador na dependência da vontade divina.

Um exemplo claro da relação entre o sentimento de adoração e a atitude de serviço encontra-se na narrativa do evangelista Lucas, que transferiu para as páginas as palavras do Cântico de Maria, mãe de Jesus. A jovem mulher da Judeia recebeu a visita do anjo do Senhor, que fez a anunciação do nascimento do Redentor, e da escolha da pessoa através da qual esse evento seria realizado. Então, Maria adorou o Senhor, elaborando um cântico no qual expressa sua condição de “serva” (Lc 1:48), para cumprir a vontade de Deus. Dessa maneira, Maria, como adoradora de Deus, colocou sua vontade de servir em irrestrita harmonia com a vontade divina.

ADORANDO O QUE NÃO SE CONHECE

Uma das condições primordiais da adoração genuína é a de conhecer os atributos de quem merece adoração. As religiões do passado, que na atualidade são consideradas extintas e, por esse fato, devem ser consideradas falsas expressões de religiosidade, assumiam suas características com cerimônias e ritos diante de imagens elaboradas, sem que se conhecesse a natureza ou os atributos do ser que adoravam.

Estudiosos da origem das religiões afirmam que muitos desses agrupamentos foram constituídos por impulsos sentimentais do ser humano, diante do desconhecido. Essas religiões surgiam por expressões emotivas da natureza humana, como esforço um tanto racional para poder entender os fenômenos que afetavam sua vivência. Tais expressões emotivas permitem efetuar uma classificação das religiões e da sua origem. Assim, o fetichismo consiste em personificar os grandes objetos que provocam os fenômenos naturais (exemplo: o deus Sol, adorado em muitas religiões); o Manismo, que surgiu pela recordação e culto aos antepassados mortos; o Animismo, posição que sustenta a ideia da existência de espíritos dos objetos da natureza; o Totemismo, crença que destaca o parentesco de todas as famílias do clã ou tribo com um determinado animal de atributos pródigos, considerado o Tótem (exemplo: as religiões nacionais, que agrupam os indivíduos pelas afinidades com o símbolo religioso, como as atuais torcidas organizadas).

As teorias propostas para tratar a origem das religiões, principalmente do passado, podem também ser aplicadas ao surgimento de movimentos religiosos da atualidade. Em parte das suas crenças, esses evocam alguns dos princípios fundamentais ou expressões emotivas que, no passado, motivaram o surgimento das religiões. Assim, essas formas religiosas podem ser identificadas como grupos que estimulam uma religiosidade de adoração ao que não se conhece.

Nas páginas do evangelho de João, o discípulo amado, está registrado um evento que permite verificar como um grupo social pode estabelecer um comportamento religioso improcedente, adorando o que não se conhece. É o encontro de Jesus com a mulher samaritana, na região da Galileia, no entorno do poço de Jacó.

Os samaritanos foram denominados assim, com sentido pejorativo, porque eram um grupo social heterogêneo constituído por remanescentes das tribos que formavam o reino de Israel ou do Norte, que se uniram em matrimônio com pessoas de diversas nacionalidades. Essa miscigenação começou durante o exílio, após a destruição da cidade de Samaria em 722 a.C. pelas forças do exército assírio comandadas, inicialmente, por Salmanasar V, e concluída por Sargão II. Os sobreviventes foram levados ao cativeiro onde puderam formar famílias com pessoas do paganismo. A mistura étnica era de tão grande que, nas veias das novas gerações, parecia correr mais o sangue do paganismo do que o israelita. A volta do exílio permitiu que muitos estrangeiros fizessem parte do novo grupamento, adotando a religião judaica alienada com o ritualismo idolátrico das suas origens.

Os judeus de Jerusalém não os reconheceram como descendentes de Israel. Eles os desprezaram e não permitiram que colaborassem com a construção do Templo. Então, os samaritanos decidiram construir para si um Templo, no monte Gerizim. O local escolhido tinha precedentes de sacralidade: fazia parte da região de Hamor, adquirida por Jacó. Foi o lugar em que Josué leu para o povo a Lei de Moises. Flávio Josefo, historiador judeu, afirma que os samaritanos, além de construir o Templo, estabeleceram uma casta sacerdotal, que propiciou o início de um cerimonial festivo e inovador.

A controvérsia sobre a validade da adoração no Templo de Jerusalém ou no edificado no monte Gerizim é colocada em destaque pelas palavras da mulher samaritana, quando se referiu aos juízos enunciados pelos ancestrais dos samaritanos e dos judeus (Jo 4:20). Jesus, então, procurou elucidar a controvérsia que persistia sobre o lugar de adoração, afirmando que os samaritanos adoravam o que não conheciam; mas, os judeus adoravam o que conheciam, porque é desse povo que procede a salvação (Jo 4:22). Jesus fazia referência à revelação divina sobre o povo judeu; enquanto a religiosidade e o ritualismo dos samaritanos eram fruto de bem intencionadas prerrogativas humanas; mais nada que isso.

O problema sobre o lugar de adoração teria permanecido insolúvel, não fosse o esclarecimento de Jesus, a esse respeito. O Templo de Jerusalém cumpriu sua função como lugar de adoração, pelos atributos que ostentava e por enunciar a vinda e sacrifício do Redentor, na figura do cordeiro imolado. A partir do momento em que o Redentor veio para os Seus, e aguardava o momento culminante do Seu sacrifício expiatório, Jesus anunciou que era chegada a hora em que a verdadeira adoração não mais seria efetuada no lugar restrito pelo cerimonialismo judeu; mas os verdadeiros adoradores “
adorarão o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4:21, 23).

OS VERDADEIROS ADORADORES

Não havendo o Templo para expressar adoração a Deus, esse ato, que renova a comunhão do humano com o divino, deve ser efetuado em “
espírito e em verdade”. Não se deve considerar que os templos atuais não sejam lugares de adoração. Não são, na medida da função cerimonial e sacerdotal que caracterizava o Templo do período vetero testamentário. Mas os templos atuais exercem outras funções e, como tais, são lugares sagrados de adoração.

A expressão “em espírito e em verdade” merece uma análise e interpretação em forma ampla, o que é feito por diversos comentaristas bíblicos. Nesta oportunidade, daremos a interpretação com base na relação entre adoração e serviço, segundo o critério hermenêutico esboçado em parágrafos anteriores. Ao assim proceder, cabe mencionar a relação explícita entre os vocábulos ativos: servir e obedecer. Só é possível servir a quem se obedece. O serviço efetuado para o bem reflete obediência devida a Deus; contrariamente, o serviço que gera resultados negativos supõe submissão e obediência ao maligno. A advertência de Jesus a esse respeito é uma orientação segura para uma vida de comunhão: “
Ao Senhor teu Deus adorarás e só a Ele servirás (obedecerás)” (Lc 4:8).

O termo grego utilizado pelo apóstolo João, e traduzido por espírito, é pneuma. Os significados desse vocábulo são diversos, como: ar, vento, força, disposição, atitude, etc. Numa apreciação genérica do termo, observa-se que seu significado mais expressivo é: energia dinâmica que atua na pessoa. Com o auxílio desses recursos linguísticos, será possível concretizar um conceito mais elaborado sobre o termo verbal adorar. O enunciado seria: adorar é servir para o bem, obedecendo a Deus, com paixão e dinamismo.

O bem servir, segundo expressão da vontade divina, é para beneficiar a si mesmo e aos semelhantes. Na realidade, é uma atitude que se iguala ao mandamento comportamental enunciado por Jesus: “
Amarás ao teu próximo, como a ti mesmo” (Jo 22:39). Só existe uma forma de bem servir recomendada pelo escritor bíblico, e cuja premissa fundamental concede caráter de viabilidade e disponibilidade para os verdadeiros adoradores. Essa única maneira de executar serviço eficiente e de benefício para todos é desenvolver os “dons espirituais” e cultivar os “frutos do Espírito”. Citamos algumas dessas virtudes que fazem parte da nobre galeria de qualidades morais concedidas pelo Espírito Santo: entre os dons espirituais: sabedoria, conhecimento, fé, dons de curar, operação de milagres, etc. (1Co 12:8-12); e entre os frutos do Espírito: amor, alegria, paz, longanimidade, bondade, mansidão, etc. (5:22-24). Adorar em espírito é servir imbuído integralmente com os dons e frutos do Espírito.

Adorar em verdade. 

Não é possível desprender da identidade de Jesus o conceito de verdade. Ele mesmo afirmou: “Eu sou... a verdade...” (Jo 14:6). Jesus teria feito a mesma afirmação quando foi inquirido por Pilatos: “O que é a verdade?”; mas o governador da Judeia não aguardou a resposta orientadora que teria causado grande comoção à sua natureza humana, enfraquecida pela corroída ambição política.

Um dos conceitos sobre verdade que têm harmonia com a declaração de Jesus foi exposto pelo filósofo grego, Aristóteles. Para esse pensador, verdade é o que se relaciona com a realidade; não com aquela realidade transitória ou efêmera, mas, com a que perdura ou que é eterna. Assim, utilizando o enunciado aristotélico, podemos entender a afirmação bíblica e saber que a única realidade eterna é Deus, portanto, a única verdade. Todos os outros objetos, criados e transformados apenas se aproximam da verdade. Continuando com a exposição do sábio ateniense, é necessário incluir o seguinte raciocínio: todo objeto verdadeiro precisa de um enunciado verdadeiro. Isso significa que um objeto, por mais real que seja, se não tiver um conceito ou descrição, será incognoscível. Ainda mais, é necessário destacar a relação íntima entre o objeto real e seu enunciado; assim: o objeto real é verdadeiro se seu enunciado for verdadeiro, e a expressão inversa é também válida: o enunciado é verdadeiro se o objeto real for verdadeiro.

As premissas expostas por Aristóteles assumem uma sequência lógica e são de valioso auxílio para entender a afirmação bíblica que relaciona Deus com a verdade. Deus é a única realidade eterna; por isso, Sua qualidade de verdade é apreciada. Além disso, o enunciado de Deus são Seus atributos que também são eternos, através dos quais Ele se faz conhecido. Os atributos de Deus se expressam em Seu poder criador, na implantação das leis naturais e sobretudo no estabelecimento da lei moral, sem deixar de apontar Seu desígnio que esboça o destino futuro do Universo. O estudo desses atributos em forma sistemática dá origem à contextualização das doutrinas. Por isso, é factível asseverar: Deus é verdadeiro porque Suas doutrinas são verdadeiras; ou inversamente, as doutrinas de Deus são verdadeiras poque Ele é verdadeiro. Adorar em verdade é observar em obediência os preceitos das Suas doutrinas.

Em suma, adorar em espírito e em verdade é servir a Deus mediante o uso dos dons e frutos do Espírito e cumprir as proposições das Suas doutrinas.

Autor deste comentário Pr. Dr. Ruben Aguilar





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