Estamos diante do menor documento do Novo Testamento, senão de toda a Bíblia. Todavia, não de pouca importância; comparo a segunda epístola de João a uma gema de ovo: pequena, mas substanciosa.
Como ocorre em 1º João, a admoestação apostólica na presente epístola foi dada face a problemas criados por dissidentes que, vez por outra, visitavam a congregação à qual João se dirigiu. Deixando de lado o fato de que, o mais provável é que “senhora eleita”, no v. 1, personifique uma congregação local, e não determinada pessoa ou então, à luz de Atos dos Apóstolos, p. 554, e Santificação, p. 64, que ambas as coisas devam ser pretendidas, o importante é que a admoestação aí inserida envolve o exercício da verdade e do amor, manifestado na obediência aos mandamentos de Deus, isto é, na vivência da doutrina de Cristo.
Vivência implica perseverança, subentendida no emprego dos verbos “andar” (três vezes, v. 4, 6) e “permanecer” (também três vezes, v. 2, 9), este na forma negativa uma vez (“não permanece”, v. 9) em referência aos referidos dissidentes que se haviam desviado da fé. Eles não haviam perseverado na doutrina e, agora, se empenhavam para que outros membros fizessem o mesmo. É muito triste quando uma pessoa apostata e abandona de vez a igreja e seus antigos companheiros de fé; mais deplorável, todavia, quando ela, a serviço do diabo, fica por perto instigando outros a que façam o mesmo.
A exemplo do emprego em 1º João, “andar” aqui tem o sentido de avançar, progredir, prosseguir. É inegável que perseverança é a chave do êxito, do triunfo, em qualquer empreendimento, e não seria diferente em assuntos espirituais. Daí o apelo do escritor, expresso em 2º João 8 como centro temático da epístola: “Acautelai-vos, para não perderdes aquilo que temos realizado com esforço, mas para receberdes completo galardão.” Que adianta nadar e nadar, só para acabar morrendo na praia?
Damos graças a Deus porque o Espírito Santo atua em nós para nos fazer perseverar. Se não for resistido, Ele não só nos garante o conhecimento da verdade (Jo 16:13), mas também a permanência nela tanto quanto a permanência dela em nós; isso “para sempre” (2Jo 2), pois Ele veio para estar conosco também “para sempre” (Jo 14:16). Assim, não é por coincidência que o Espírito Santo é identificado não apenas como “o Espírito da verdade” (15:26), mas como a própria verdade (1Jo 5:6). Em resumo, a verdade permanece em nós para sempre, e nós, na verdade, porque o Espírito Santo nos foi dado para estar em nós para sempre. Negá-Lo é negar a verdade.
Em amor e verdade
O amor, para ser verdadeiro, tem que ser qualificado pela verdade. Acrescentaria que também a verdade precisa ser qualificada pelo amor para alcançar o seu propósito. Deus é tanto amor (1Jo 4:8, 16) quanto verdade (Jo 14:6; 1Jo 5:6), e ambos, unidos, procedem dEle.
Só no dicionário deveria “amor” estar distante de “verdade”. Eles precisam estar intimamente associados, particularmente na vida cristã, pois sempre estiveram associados na pessoa de Jesus. Se, como Pilatos, perguntássemos “O que é a verdade?”, uma resposta não apenas correta, mas profundamente significativa seria: “É a revelação de Deus em Jesus Cristo.” Se igualmente perguntássemos “O que é o amor?”, a mesma resposta poderia ser dada: “É a revelação de Deus em Jesus Cristo.” Verdade e amor são as duas grandes colunas sobre as quais o caráter de Deus se sustenta, e o Filho de Deus veio a este mundo para revelá-los.
Portanto, é imperativo que, em Jesus, recebamos o pacote completo, não apenas parte dele. Temos que amar “em verdade” (2Jo 1; 3Jo 1) tanto quanto seguir a verdade em amor (Ef 4:15). Amor sem a verdade não vai além de mera emoção, podendo mesmo se transformar em sentimentalismo doentio, egocêntrico, sensual, acarretando consequências lamentáveis, como se nota na presente situação do mundo, farto de “amor” sem verdade e faminto de “verdade” com amor. Esta, quando só, torna-se fria, rígida, radical, legalista, presumida, intolerante. Sem amor, a verdade mais fere que educa, mais amofina que refina, mais repele que atrai, mais degrada que dignifica. Não é raro aquele que possui a verdade sem amor tornar-se petulante, agressivo e exclusivista.
O que isto toca a nós como igreja? Louvamos a Deus pelo conhecimento da verdade por Ele conferida; mas equilibramos a verdade com o amor? Como procuramos doutrinar os que ainda não conhecem o evangelho? Ellen G. White afirma: “Se o homem tem que ser convencido, a verdade como é em Jesus deve ser apresentada à sua mente e tem de apelar ao seu coração. Cristo Se recusa a utilizar qualquer outro método – seja compulsão, restrição ou força. Suas únicas armas são o amor e a verdade” (Review and Herald, 28 de junho de 1898), grifos acrescentados. “Poder compulsor só se encontra sob o governo de Satanás” (O Desejado de Todas as Nações, p. 759).
Andando conforme os mandamentos (2ºJo 4-6)
João fala de sua alegria pelos membros da congregação que eram fiéis à verdade (v. 4). É “estimulante e encorajador aos membros da igreja ouvir que o presbítero se regozija muito que eles ‘andem na verdade’. Isso os motiva a continuar na vida cristã.” A alegria do presbítero lhes evidenciava que ele era um líder zeloso, que se preocupava com o bem-estar e progresso espiritual da igreja, e que, portanto, tinha-os em alta consideração e estima; isso os animava.
Esta maneira de ser e sentir deveria caracterizar qualquer pessoa que viesse a desempenhar alguma função na igreja. Infelizmente nem todos parecem assim movidos. Há líderes, por exemplo, que fazem vista grossa a problemas espirituais entre os membros, apenas para evitar algum tipo de confronto ou simplesmente por não se importarem sobre como andam as coisas; optam sempre pelo caminho mais fácil. Outros, todavia, vão ao extremo oposto; agem sem consideração, sem amor, querendo levar tudo no peito e na raça, impondo sua liderança na forma de uma autocracia repressiva e arbitrária (possivelmente Diótrefes era um líder assim).
Nada disso é bom, pois prestação de contas terá que ser dada a Deus pela forma como a liderança cristã é conduzida. Não há, de fato, como exagerar a importância do ministério de um líder espiritual, seja ele assalariado ou não. Se, por um lado, recompensas inimagináveis aguardam aqueles que cumprem fielmente a missão que lhes foi confiada, punição severa será aplicada àqueles que forem negligentes e acarretarem dano à igreja. Deus nos livre de fazer o papel do “servo mau e negligente” (Mt 25:26-30).
Em que pese o fato de alguns se melindrarem por alguma posição mais firme adotada pela direção da igreja face a alguma situação problemática, os membros em geral se desapontam e lamentam quando o pecado não é levado suficientemente a sério; ou então, se sentem animados na fé quando medidas necessárias são empreendidas para a correção do erro, o que confirma a verdade em suas vidas.
Algo mais me chama a atenção no verso 4: embora o que João tenha dito quanto à razão de sua alegria possa se aplicar aos membros em geral, o escritor definidamente não afirmou que todos ali andavam na verdade; isto nos faz lembrar de que não há uma igreja perfeita. Eventualmente, naquela congregação, poderiam já alguns estar obedecendo “a espíritos enganadores e a ensinos de demônios” (1Tm 4:1), o que, nas entrelinhas, pressuporia a obra de dissidentes.
João, portanto, reforça o seu apelo em favor da unidade; para tanto, ele insta “que nos amemos uns aos outros” (v. 5). O amor fraternal é, com efeito, a característica decisiva da comunidade cristã (veja Jo 13:34, 35), o laço que estreita os crentes numa grande família. O inimigo, através da dissidência, se empenhava por romper esse laço, razão por que o apóstolo os exortou a permanecer leais à verdade que, desde o princípio, haviam recebido do Pai.
Nos versos 5 e 6, o escritor alterna o singular e o plural de “mandamento”, o primeiro em alusão ao amor fraternal e o segundo ao que o decálogo especifica; tudo, evidentemente, impelido pelo amor, o qual “se mostra na guarda dos mandamentos de Deus.”
Não é por acaso que, entre os escritores do Novo Testamento, seja o “apóstolo do amor” quem mais proporcionalmente insista no imperativo de se guardar os mandamentos como evidência da verdadeira vida cristã. A lei de Deus é a lei do amor, e sem que este se faça presente não há como, segundo o ideal divino, obedecer ao que é requerido. Ninguém jamais guardou a lei como Jesus porque afinal ninguém jamais amou como Ele.
Ultrapassando a doutrina de Cristo (2ºJo 7-9)
João faz a terceira alusão direta aos dissidentes que perturbavam a comunidade cristã que ele conduzia. Na primeira, ele os chamou de anticristos (1Jo 2:18-23); na segunda, de falsos profetas (4:1-3); e aqui, na terceira, de enganadores. De certa forma, as qualificações se equivalem e denotam a intensidade de engano e perversão que a obra deles encerrava. Dessas três, a pior qualificação é, sem dúvida, a primeira; talvez por conta disso, ela se faça secundariamente presente também na segunda e na terceira alusões: os falsos profetas e os enganadores eram movidos pelo “espírito do anticristo” (1Jo 4:3) e eram o próprio anticristo (2Jo 7).
Entre outras heresias, os dissidentes afirmavam que Jesus não havia vindo “em carne”. João anelava que os membros da igreja permanecessem fiéis à “doutrina de Cristo”. O termo, no singular, tem a ver com o ensino dos apóstolos sobre Jesus, ou seja, a mensagem do Novo Testamento em geral, e dos quatro evangelhos em particular. O termo no plural, doutrinas, envolve aquilo que Jesus viveu e ensinou, cujo conteúdo se fundamenta em toda a Bíblia, pois esta testifica dEle (Jo 5:39).
Tem importância a doutrina (ou as doutrinas), se somos salvos exclusivamente pela fé numa pessoa, Jesus Cristo? As doutrinas bíblicas nada mais são que uma revelação do próprio Cristo; Ele as encarnou e as revelou por Sua vida e ensinos. Então, onde reside o problema de ultrapassar a doutrina de Cristo? Qual o risco de assim fazer?
Bem, temos que entender que a revelação de Deus em Cristo e por Cristo foi absoluta, completa e final, razão porque ela é normativa no sentido em que todo genuíno conhecimento de Deus é dependente dela e se harmoniza com ela. Isso significa precisamente que não existe qualquer revelação desconectada de Jesus Cristo, pois Ele é a fonte de revelação divina em qualquer época. Ademais, Ele mesmo veio até nós trazendo a “última palavra”.
Portanto, qualquer declaração que não se ajuste à mensagem bíblica, isto é, àquilo que está registrado sobre quem é Jesus e qual é Seu ensino (o que Ele revelou de Si mesmo, de Deus, da salvação, etc.) deve ser, tal declaração, sumariamente rejeitada, porque ela vai além dEle, e do que Ele revelou; portanto, é diabólica e fatalmente resultará em ruína eterna.
É nesse sentido que Jesus afirmou que “todos quantos vieram antes de Mim [isto é, colocaram-se à Minha frente, ultrapassaram-Me, antepuseram-se a Mim, suplantaram-Me] são ladrões e salteadores” (Jo 10:8). Essa é uma denúncia por demais vigorosa, enérgica, inexorável, intimativa; mas poderia Jesus ser mais brando? Pode haver uma obra mais diabólica que furtar do reino de Deus um precioso ser?
Todo dissidente deveria pensar seriamente nisso, e pesar as consequências do falso ensino que propaga, ou da atitude de se levantar contra a verdade. Pode até ser que, pela misericórdia de Deus, mesmo o dissidente se arrependa e se reconcilie com Ele e com a igreja; mas e aqueles que a dissidência desviou e não mais retornaram? Quem responderá por eles?
Negligenciando a hospitalidade? (2ºJo 10, 11)
O que João requer no verso 10 não conspira contra a prática da hospitalidade que os cristãos são biblicamente orientados a cumprir. A questão aqui é outra, o apoio ao falso ensino, algo sério que não poderia evidentemente ocorrer, principalmente com os líderes locais. Se esses mestres propagavam doutrinas falsas, a hospitalidade era entendida como um apoio à sua posição e ajudava realmente o seu trabalho. Além disso, os membros da igreja que estavam vacilando entre o ensino apostólico e as ideias falsas podiam ficar confusos ou até mesmo tomar uma decisão errada, caso vissem um membro preeminente da igreja permitindo que um enganador ficasse em seu lar.” Mal entendidos a esse respeito deveriam ser evitados a todo o custo. Sobre a recepção de dissidentes que se levantam contra a verdade, Ellen G. White praticamente repete o que João escreveu: “Não os recebam, não lhes desejem bom êxito” (Testemunhos Seletos, v. 2, p. 363). “Afastem-se desses; não tenham comunhão com sua mensagem...” (Ibid., v. 3, p. 47.
A importância desse delicado item é vista no fim do verso 11, em que o escritor afirma que quem dá acolhida a um falso mestre “faz-se cúmplice de suas obras más”. Como no caso de um crime, qualquer cumplicidade com o engano torna o cúmplice tão culpado como aquele que perpetra a obra de enganar. A esse respeito, Paulo já havia advertido os cristãos de Éfeso (justamente o centro da região em que João agora exercia o seu pastorado): “E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; antes, porém, reprovai-as” (Ef 5:11).
Há o parecer de alguns estudiosos de que o termo “casa” no verso 10, não se refere a uma residência propriamente dita, mas ao local de reunião, aquilo que chamaríamos hoje de “igreja”. A propósito, um lembrete aos nossos queridos anciãos e líderes de grupo: Não permitam que determinados andarilhos que se dizem adventistas, e que ficam perambulando de igreja em igreja, ocupem o púlpito no pretexto de serem portadores de importante mensagem que os irmãos “precisam” ouvir.
Salvo se forem pessoas reconhecidamente fiéis aos princípios que defendemos, ou que, sendo desconhecidas, portem uma recomendação do pastor da igreja em que são membros, ou melhor ainda, da direção do campo de que procedem, o púlpito não lhes pode ser facultado sem o risco de a congregação acabar ouvindo uma heresia. Não esqueçamos que, uma vez semeada, a palavra má produzirá seus efeitos deletérios, sendo muito mais difícil compensar o dano daí proveniente; costuma-se dizer que é melhor prevenir do que remediar. "A igreja não deve encorajar um mestre que pregue heresias”.
Comunicação pessoal (2ºJo 12, 13)
João chega ao fim de sua pequena epístola, entre as três que escreveu, a que mais se aproxima desse estilo literário. Como visto, “os filhos da tua irmã eleita te saúdam”, do verso 13, representam os membros de outra congregação, possivelmente de onde o escritor remeteu a epístola. Suas palavras de encerramento no verso 12 merecem alguma consideração:
“Ainda tinha muitas coisas para vos escrever...”
Entre amigos nunca falta assunto para se dialogar, principalmente em se tratando da vida cristã. Ficamos imaginando o que João teria ainda para comunicar; o conteúdo da primeira epístola bem revela do que sua mente estava plena. Assim, ele provavelmente trataria das maravilhas da obra de Deus em favor dos pecadores, dos dons e recursos excepcionais providos na pessoa de Jesus, Seu amado Filho, para a salvação da raça perdida; das bênçãos do evangelho, enfim! E com isto, intensificaria sua admoestação quanto a não darem guarida a dissidentes e seus falsos ensinos, para não perderem as dádivas que graciosamente haviam recebido e continuavam recebendo. Em outras palavras, João desdobraria para eles o que já expusera em suas epístolas; isto é o que posso presumir.
“... não quis fazê-lo com papel e tinta, pois espero ir ter convosco...”
Mensagens enviadas por correio convencional ou eletrônico têm o seu lugar e valor (a preservação da mensagem; se toda a conversação que os apóstolos tivessem com a igreja fosse exclusivamente oral, o que saberíamos hoje do ensino apostólico? O que nos traria o Novo Testamento?). Mas há coisas que precisam ser ditas pessoalmente, para lograrem um efeito mais eficaz, e João estava ciente disso.
O apóstolo declara seu anseio por visitá-los; isso nos lembra de que pessoas que se amam procuram estar juntas tanto quanto possível. A expressão desse anseio demonstra o quanto João estimava sua comunidade. Ele quase se vale dos mesmos termos em 3 João 13, 14.
“... e conversaremos de viva voz...”
“De viva voz” é a versão do grego stóma prós stóma, “de boca a boca”, o que indica intimidade, um relacionamento achegado. Talvez o escritor tivesse em mente a maneira como Deus falava com Moisés, segundo registrado em Números 12:8, e assim se expressou em relação a eles.
“... para que a nossa alegria seja completa.”
No verso 4, o escritor já havia falado de sua alegria em razão dos que andavam na verdade; sem dúvida, saber disso havia sido motivo de alegria também para estes. Agora, visitando-os e conversando mais intimamente, aquela alegria mútua seria plena. Bem, um encontro entre amigos que se estimam produz muita alegria entre si. Para os que amam a Deus, a oportunidade de um encontro em Sua casa, para estar “na companhia dos justos e na assembleia” é motivo de alegria (Sl 111:1; 122:1). Imagine como será quando nos reunirmos no lar eterno!
Mas, e quanto àqueles que não têm prazer de ir à igreja, na alegação de que preferem viver a religião em casa? Se não se alegram em reunir aqui com os companheiros de fé, como se sentirão no Céu, na reunião com a igreja de todos os tempos e lugares? Ou será que não estarão lá?
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