quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Todo filho de Deus ama




Nesta semana, estudaremos um tema joanino por excelência: o amor. Embora seja da autoria de Paulo o poema mais lindo sobre esse tema (1Co 13), não poderia ser outro senão o discípulo amado que, abordando-o, chegasse à conclusão máxima: “Deus é amor” (1Jo 4:8, 16).


Uma abordagem assim efetiva tem uma razão de ser: a experiência de transformação que João auferiu através da comunhão com Jesus. Ao se tornar Seu discípulo, ele revelou ser movido por marcantes traços negativos que o faziam algo antipático perante os companheiros de discipulado; era o mais jovem do grupo (O Desejado de Todas as Nações, p. 213) e revelava-se ambicioso pelo primeiro lugar. De fato, a cobiça, o amor à posição e à supremacia e o desejo de ser promovido (Mt 10:35-37, 41), caracterizavam sua maneira de ser. E esses defeitos não eram os únicos.


Jesus o chamou e a seu irmão, Tiago, de “filhos do trovão”. Eram geniosos, impetuosos, dados ao ressentimento e propensos à vingança (Lc 9:49-54). Por trás de tudo isso, porém, Jesus discerniu em João um coração ardente, sincero e amante. Embora repreendido pelo Mestre, apegava-se a Ele mais firmemente, até que teve a alma amalgamada à dEle. Foi o “discípulo que Jesus amava”. Em seu coração, a chama da lealdade e devoção ardente o tornaram um dos mais destacados apóstolos na igreja cristã.


Entre Jesus e ele desenvolveu-se profunda amizade, mais intensa que em relação a outros discípulos; não que Jesus não amasse a esses, mas porque, em João, Seu amor encontrou eco mais expressivo. Esse discípulo abeberou-se tanto da Fonte, que se tornou uma vívida reprodução do Salvador. Como Jesus era a expressão máxima do amor de Deus, João se tornou uma evidente demonstração desse amor; uma prova inequívoca de que o amor transforma, “O amor pode mudar o mundo, as igrejas, as famílias e os casamentos.” Pode mudar também cada um de nós.


Mas como tal mudança foi possível? Observem: “Dia a dia, em contraste com seu próprio espírito violento, ele observava a ternura e longanimidade de Jesus e ouvia Suas lições de humildade e paciência. Dia a dia seu coração era atraído para Cristo, até que perdeu de vista o próprio eu no amor pelo Mestre. O poder e ternura, a majestade e brandura, o vigor e a paciência que ele via na vida diária do Filho de Deus, encheram-no de admiração. Submeteu seu temperamento ambicioso e vingativo ao modelador poder de Cristo, e o divino amor operou nele a transformação do caráter...” (Ibid., p. 557). Também nós temos que aprender de Jesus como João aprendeu.

Afirma-se que, estando para morrer, perguntaram-lhe se tinha uma última mensagem a dar. “Amai-vos uns aos outros”, disse ele, e expirou.


As duas passagens sobre o amor (1Jo 3:11-24; 4:7-5:4)


A lição nos lembra que o texto de 3:10 faz a ponte entre o que João antes apresentara, os privilégios e implicações de sermos filhos de Deus e, a seguir, sua abordagem do amor. Ele quis reforçar o fato de que o amor fraternal é a maior evidência da filiação divina, isto é, que pertencemos a uma grande família, cujo Pai não é outro senão o Senhor do Universo. Nessa família, o irmão mais velho é Jesus Cristo, aquele pelo qual nossa filiação se torna possível (Jo 1:12). Essa evidência foi estipulada por Ele mesmo: “Nisto conhecerão todos que sois Meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13:35).


O discurso de João sobre o amor também é para ser entendido no contexto dos dissidentes gnósticos que perturbavam a igreja naqueles dias (aliás, a inteira epístola deve ser assim considerada; essa é a nossa posição no presente comentário).


Afinal, não se pode amar a Deus na intensidade de amor que Ele merece, se não se levar em consideração o quanto Ele nos amou ao entregar o Filho unigênito (cf. Jo 3:16) para ser nosso Salvador. “Só à medida que entendemos o que aconteceu na cruz e como Cristo levou sobre Si mesmo o castigo dos nossos pecados é que podemos amar a Deus como devemos.” Os gnósticos, com suas heresias, obliteravam o que realmente havia ocorrido no Calvário, o que repercutia negativamente na forma como o amor fraternal deveria ser cultivado pelos membros da comunidade em que eles exerciam forte influência. Daí a exortação apostólica sobre o amor.


Acrescento apenas que há dois termos gregos principais que significam amor, philía e ágape. O primeiro aparece na Bíblia apenas uma vez, em Tiago 4:4, vertido “amizade”. O segundo é empregado umas 115 vezes, das quais 28 nos escritos joaninos (7 no Evangelho e 21 nas Epístolas), mais de 24%. As formas verbais philéō e agapáō são bem mais frequentes em toda a Bíblia (25 vezes o primeiro termo e 141 o segundo). João emprega philéō apenas em seu Evangelho (13 vezes, o que corresponde a mais de 50%), enquanto o emprego de agapáō ocorre em todos os escritos joaninos (36 no Evangelho, 31 nas epístolas, das quais 28 na primeira, e 4 no Apocalipse; corresponde a quase 50% do emprego em todo o Novo Testamento).


Philéō deve ser entendido mais como afeição carinhosa, ternura, etc., o exercício do amor entre pessoas que se estimam; agapáō é o amor altruísta, desinteressado, que não busca o interesse senão do objeto amado; o amor que está pronto a servir o ente amado, e até mesmo ser sacrificado por ele. Essa é a qualidade de amor com que Deus nos amou, e é a qualidade com que devemos amar a Ele, e aos nossos semelhantes, “principalmente aos da família da fé” (Gl 6:10).


A “definição” de amor (1Jo 3:11-16; 4:7-16)


O uso mais acentuado de ágape/agapáō por João é muito significativo. Ele esperava que os membros de sua comunidade se sentissem de tal forma tocados pelo amor de Deus a ponto de serem levados a amar como Deus ama.


A lição observa que o apóstolo define o amor primeiramente exemplificando em Caim o que o amor não é. De fato, a ação de Caim assassinando seu irmão é precisamente o extremo oposto do amor divino. Enquanto este está pronto a sacrificar, em favor do ente amado, o que de mais precioso possui, Caim foi aquele que se levantou para sacrificar a vida que ele não somente deveria poupar, mas em favor da qual até deveria estar disposto a ser sacrificado, fosse tal ato necessário para que ela fosse poupada. Isso, porém, só aconteceria se ele estivesse imbuído do amor divino.


Propositalmente, João não menciona o nome da vítima do ato homicida de Caim; prefere “seu irmão” em lugar de “Abel”, por motivo de contraste com “amor fraternal” (amor entre irmãos). Com isso, ele deixa transparecer que a ação do primeiro homicida poderia ser repetida “entre irmãos”, os membros da comunidade cristã à qual se dirigia. Segundo o que João afirma, de fato, não precisamos tirar a vida a alguém para sermos homicidas (v. 15; cf. Mt 5:21, 22). Por exemplo, podemos matar com a língua, tanto quanto com a espada ou o punhal. Com ela bendizemos ou amaldiçoamos (Tg 3:9), construímos ou derribamos, curamos ou ferimos, vivificamos ou matamos. Nossas palavras podem ser “um cheiro de vida para vida ou de morte para a morte” (Parábolas de Jesus, p. 337). Precisamos ter cuidado, para não seguirmos o caminho de Caim!


Ao exemplo negativo de Caim, João contrapõe o exemplo positivo, sublime, altruísta de Jesus, aquele que “depôs Sua vida por nós”. Para a lição, “este é o significado mais profundo de amor. Amar significa fazer tudo o que for necessário para ajudar os outros, mesmo que requeira abnegação”, ou mesmo o sacrifício, eu diria.


Mas além desta definição pastoral, João nos oferece uma definição ainda mais relevante, pois esta que acabamos de considerar procede daquela.


Segundo os escritos joaninos, verdade, luz e amor não devem ser definidos em termos meramente conceituais; os termos identificam, antes de tudo, uma pessoa: Deus. Ele é luz (1:5), verdade (5:6) e amor (4:8, 16), e Seu Filho, Jesus Cristo, é luz (Jo 1:4-9; 8:12) e verdade (14:6) encarnadas; e pela forma como demonstrou amor em Sua passagem pela Terra, Ele não pode ser menos que amor encarnado (Jo 13:33).


A exemplo de “Deus é luz”, a fórmula “Deus é amor” poderia igualmente ser tomada como simples abstração filosófica. Mas o apóstolo não está filosofando; novamente fala em termos práticos. Deus não ama apenas de palavra; Seu amor se cristaliza em atos, cuja expressão máxima é Jesus Cristo: “Nisto se manifestou o amor de Deus em nós, em haver Deus enviado Seu Filho unigênito ao mundo para vivermos por meio dEle. Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou, e enviou o Seu Filho, como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4:9, 10). “Unicamente através dEle [Jesus] e do que Ele fez por nós pode o amor de Deus ser entendido em sentido mais profundo.”


Crise de Confiança (1Jo 3:19-21; 4:17, 18)


A confiança aqui referida é a confiança em Deus. A crise acontece quando deixamos de contemplar fixamente Jesus e passamos a olhar para nós mesmos. Exceto se somos tomados por um arroubo de presunção farisaica, quando isso acontece, logo, muito logo, compreendemos quão distantes estamos do ideal de Deus para nós; então, poderemos ser levados até mesmo ao desespero (cf. Rm 7:24).


Não podemos nunca esquecer que nossa suficiência se encontra exclusivamente na amorável pessoa de Jesus. NEle precisamos nos esconder. Se fizermos isso, seremos salvos de três situações bem complicadas:

(1) o insidioso perfeccionismo, que sempre se mostra com ares de impecabilidade, tal como ocorria com aqueles dissidentes dos dias de João (veja o comentário do dia 13 de julho);

(2) o não menos perigoso liberalismo, com suas ideias condescendentes, permissivas, de que nem tudo deve ser assim tão rígido, ou levado a sério ― afinal, um pouco de indolência (pensam os liberais) não faz mal a ninguém; e, finalmente,

(3) o pernicioso derrotismo, que se nutre constantemente de sentimentos negativos, muito bem incorporados no crente pessimista, aquele que imagina que seu caso é sem esperança e que, para ele “não tem jeito mesmo!” Para estas situações, e outras de idêntica natureza, a graça é o remédio.


A “crise de confiança” é antes de tudo uma crise de consciência. É interessante notar que as três situações acima descritas podem tornar a consciência insensível, mas a terceira pode conduzir para o outro extremo: tornar a consciência um fator de contínua acusação e condenação, um estado inegavelmente deprimente que rouba a paz e qualquer senso de segurança. Conservando-nos em Jesus, nem seremos levados à indiferença, isto é, sempre seremos sensíveis às nossas próprias deficiências e insuficiências, nem nos deixaremos soçobrar pelo conhecimento de nossas falhas; tão logo sintamos a consciência a nos aguilhoar, procuraremos imediatamente a solução para o eventual problema que nos aflige. É por tudo isso que João afirma: “se o nosso coração [a consciência] nos acusar, certamente Deus é maior que o nosso coração, e conhece todas as coisas”; e que se ele “não nos acusar [o que não seria absolutamente o produto de qualquer uma das três situações referidas, mas da graça operando em nós], temos confiança diante de Deus.” (v. 20, 21). Esta confiança é tão bem fundamentada nos méritos de Jesus que não estaremos inseguros quanto ao juízo de Deus, pois em nós foi aperfeiçoado o amor (4:17). Como a lição afirma, “somente quando nos apoiamos em Seus méritos, e não nos nossos, é que podemos ter confiança e certeza... Estar em Seu amor afasta todo medo.


De fato, todas essas bênçãos são fruto do amor. Nele, “tranquilizaremos o nosso coração” (3:19), porque “no amor não existe medo; antes os perfeito amor lança fora o medo” (4:18). Poderia haver uma solução melhor para a “crise de confiança”?


Amor em ação (1Jo 3:17, 18; 4:19-21)


Vemos, então, que o ato de Deus impede que nossa consciência se torne insensível. Assim, a maneira como Deus exerce amor não pode nos deixar impassíveis. Tem que ser a grande mola motivadora do nosso amor. “Amados, se Deus de tal maneira nos amou, devemos nós também amar uns aos outros” (4:11).


Alguém poderia, entretanto, argumentar que é a Deus que devemos amar, e não aos nossos semelhantes, pois foi Ele quem nos amou de “tal maneira”. O apóstolo se apressa em contrariar esse pensamento, lembrando que “ninguém jamais viu a Deus; ...aquele que não ama a seu irmão a quem vê, não pode amar a Deus a quem não vê” (v. 12, 20). Em outras palavras, o amor a Deus se evidenciará no amor fraternal. “Ora, temos da parte dEle este mandamento, que aquele que ama a Deus, ame também a seu irmão” (v. 21).


Mas com que ações será o amor evidenciado? Respondo a essa pergunta com outra pergunta: Com que tipo de ação Deus evidenciou Seu amor? Já sabemos: Ele foi ao ponto máximo do altruísmo e da abnegação; quem estiver imbuído do Seu amor estará disposto mesmo ao sacrifício em favor de quem ele ama. João, todavia, nos dá um exemplo da ação esperada daquele que ama, reconhecidamente um exemplo aquém do ponto máximo de altruísmo e abnegação ilustrado pelo próprio Deus. “Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (3:17).


O que João, aqui, exemplifica não envolve sacrifício, pois ele fala de alguém que possui “recursos”, e que tão somente iria se dispor de alguns deles, “não é provável que alguns de nós sejamos chamados a morrer por outros crentes. Mas é mais provável sermos chamados a demonstrar amor por alguém que tem necessidades. Podemos ter os meios para prover emprego, comida, roupas, educação cristã, refúgio, qualquer coisa. Mas, muitas vezes, preferimos viver nossa própria vida confortável.”


Se assim acontece, isto é, se não se cumpre esse mínimo esperado, como chegar ao ideal do amor? Se alguém não é fiel no pouco, poderá sê-lo no muito? (ver Lc 16:10).


Amor e os Mandamentos (1Jo 3:22-24; 4:21-5:4)


Como não poderia deixar de ser, João conduz sua abordagem do amor à questão da guarda dos mandamentos. A lei de Deus é a lei do amor, registrada em duas tábuas de pedra. A primeira contém quatro mandamentos que se aplicam ao nosso relacionamento com Deus (o quarto, todavia, inclui também o nosso próximo), e a segunda contém os seis últimos, que se aplicam ao próximo. Jesus sumariou as tábuas em dois mandamentos específicos: “Amarás o Senhor teu Deus...” e “ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22:37-39). Todavia, como já comentado, à luz do próprio exemplo de Jesus, a injunção do amor ligada aos mandamentos dá um passo a frente: “amarás... como Eu amei” (Jo 13:33); isso, como visto, é mais do que “amarás como a ti mesmo.”


Em suas novas declarações, João apresenta algumas implicações da guarda dos mandamentos.

Primeiramente, a obediência é condição para que Deus atenda os pedidos que Lhe são dirigidos (3:22). Lembra-nos o Salmo 66:18: “Se eu no coração contemplara a vaidade, o Senhor não me teria ouvido”, e Provérbios 28:9: “O que desvia os seus ouvidos de ouvir a lei, até a sua oração será abominável.”

Segundo, a obediência é fruto do amor. Quem ama, guarda os mandamentos (5:2).

Terceiro, para aquele que ama, os mandamentos de Deus não são penosos (5:3), pois é próprio do amor mover quem ama a fazer a vontade daquele que é amado.

João empregou o termo mandamento tanto na forma singular como plural. Ao usar a forma singular, ele faz referência ao “novo mandamento” dado por Jesus (2:7, 8 ― veja o comentário do dia 22 de julho), à injunção de crermos em Jesus (assunto da próxima lição) e de nos amarmos uns aos outros (3:23; 2Jo 5), à injunção de se amar a Deus e ao irmão na fé (4:21), à injunção de andar na verdade (2Jo 4), e à injunção que se andar no amor (v. 6).

Ao empregar a forma plural, “João pode ter indicado que o mandamento do amor se expressa na multiplicidade de mandamentos.” Em outras palavras, o amor a Deus, que igualmente envolve o amor ao próximo, requer obediência plena à Sua vontade.


Autor: José Carlos Ramos – D. Min





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