sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Disposições para o futuro







Introdução


Há alguns anos, estatísticas indicavam que, entre os livros bíblicos, Levítico era o menos lido pelos cristãos. Suponho que a realidade não seja muito diferente em relação a Números. Há várias explicações para o desinteresse pelos livros do Pentateuco. Mencionamos alguns elementos literários que não são bem vistos pelos leitores modernos: 
enumerações detalhadas (de tribos, territórios ou partes do santuário), 
extensas listas genealógicas, apresentação de leis estranhas à mentalidade moderna, sem contar sua suposta barbárie (razão pela qual muitos críticos da Bíblia a hostilizam).


Por outro lado, nenhum fator serve de pretexto para que o cristão abandone a leitura bíblica. Basta empenho para se entender a mensagem do Pentateuco, a qual teve origem dentro de determinado ambiente cultural, mas permanece como a vontade divina. Ao analisarmos em Números 15 algumas instruções específicas dadas aos israelitas, veremos que, apesar das circunstâncias particulares, o mesmo Deus de amor do Novo Testamento Se faz presente nas páginas escritas por Moisés.


Para entendermos melhor a questão, tenhamos em mente que o objetivo era levar Israel a um relacionamento adequado com Deus, no contexto da aliança. No capítulo anterior está o relato da incredulidade dos israelitas em relação às promessas de Deus, no episódio dos doze espias. Ainda assim, a possessão de Canaã estava assegurada (Nm 15: 2, 18), desde que o povo não abrisse mão do compromisso feito com Jeová.


Gratidão


Uma vez que Israel era uma população nômade, dependente da agricultura e da pecuária, não causa espanto que as ofertas requeridas pelo Senhor fossem constituídas de produtos agrícolas, bem como de animais. As ofertas expressavam a gratidão por bênçãos recebidas e o reconhecimento de dons concedidos por Deus. Séculos mais tarde, Davi reconheceu que não podemos doar nada a Deus que já não pertencesse a Ele (1Cr 29:14).


Alguns comentaristas sugerem que cada aspecto da vida e do trabalho estivesse simbolizado nos produtos contidos nas ofertas. Seja como for, o oferecimento de vegetais, farinha e produtos, como óleo e vinho, era proporcional ao tamanho do animal sacrificado.


A complexidade daquele sacrifício nos leva a considerar o que temos sacrificado a Deus: Pedro nos fala dos “sacrifícios espirituais”, os quais somos chamados a oferecer (1Pe 2:5). Para Paulo, o culto racional (ou seja, uma atitude de dedicação integral a Deus) é o sacrifício que Deus requer de cada cristão, experiência que deve ser diária, a começar pela “renovação” da mente (v. 2). Ao nos oferecemos a Deus em sacrifício, teremos cada vez mais motivos para Lhe agradecer.


Outro ponto importante quando consideramos o ritual do santuário é o sacrifício de animais e decorrente derramamento de sangue. O fato nos remete ao papel de Jesus Cristo, o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1:29). Seu sacrifício valida o louvor que oferecemos a Deus, e também nosso sacrifício em prol de outros (Hb 13:15, 16).


Por meio das ofertas, Deus incentivava Seu povo a cultivar uma atitude grata para com o favor que Ele demonstrava. Igualmente, olhando para o que Deus fez por nós em Cristo e para a oportunidade que nos dá de O servirmos, temos maiores motivos para apresentar um coração grato no altar do Salvador!


O estrangeiro em sua terra


Diversas vezes, faz-se menção ao estrangeiro na Bíblia. Em geral, os povos antigos dividiam a sociedade em classes, que variavam em importância. Desse modo, a vida de um escravo não se comparava à de um cidadão livre, que, por seu turno, era inferior à de alguém pertencente à nobreza.


Desde o Êxodo, Deus incutiu na mente do povo o valor do estrangeiro (Êx 22:21; 23:9; Dt 10:19). 
Para os estrangeiros que viviam no meio de Israel, valiam as mesmas leis (Lv 17:8-15; Nm 15:16). 
Na ética do Pentateuco, surgiu o conceito de “próximo” (Lv 19:18), que posteriormente foi expandido por Jesus (Lc 10:25-37). 


As implicações dessa valorização da pessoa humana tiveram forte impacto sobre a construção da mentalidade ocidental: cristãos fundaram hospitais, lutaram contra a escravidão, fundaram governos democráticos e estabeleceram os direitos humanos. Porém, se aplicarmos o conceito apenas à esfera da comunidade cristã em si, teremos valores como respeito, transparência, afetuosidade e aceitação. Os cristãos precisam ser receptivos.


Fala-se muito hoje do ministério da recepção; muitas vezes até se dá ao assunto um enfoque empresarial, mas as pessoas sabem a diferença de serem recebidas por profissionais (como acontece em hospitais, empresas e hotéis) e se encontrarem com quem revele genuíno interesse e simpatia natural. Uma comunidade acolhedora pode fazer muito para romper barreiras e integrar interessados na família de Deus.


Pecados de ignorância


A ignorância a respeito de uma lei não abona alguém que a transgrida. Para mencionar um exemplo: caso um policial me veja entrar com o carro na contramão de uma rua, ainda que eu alegue não conhecer a rua, ou estar perdido, será difícil escapar da multa!


Quando se trata de Deus, a Bíblia faz distinção entre pecados intencionais e outros cometidos por ignorância – embora ambos sejam ofensivos a Deus. 


Em Números 15 e em Levítico 4, são apresentados os rituais de expiação em prol daqueles que pecavam por ignorância. Tecnicamente, faz-se distinção entre o sacrifício expiatório realizado pelo povo e o realizado por indivíduos. Dois animais eram oferecidos na expiação coletiva, um novilho e um bode (Nm 15:25-26); por indivíduos, apenas um cordeiro de um ano se ofertava (v. 27-29).


Para Deus, as boas ações não contam, se estiverem divorciadas de bons motivos. Pare e pense: distribuir cestas básicas é uma ação louvável? Você diria “sim”, não é? Mas, e se eu fosse um candidato a prefeito e me deixasse fotografar distribuindo alimentos, ainda seria uma boa ação? É claro que as intenções são determinantes para qualificar as ações. Deus considera que até as melhores realizações humanas, desprovidas de fé, estão contaminadas pelo pecado (Rm 14:23).


Todavia, muitas vezes é impossível determinar a real intenção de alguém. Apenas o Senhor vê com absoluta objetividade o porquê de nossa conduta; afinal, conhecendo profundamente nosso coração (1Sm 16:7; Jo 2:24, 25), Ele é capaz de aquilatar cada motivação humana. Só nos resta reexaminar constantemente os nossos caminhos (Lm 3:40) e pedir a Deus que nos dê um coração íntegro (Sl 51:10).


Pecados de desafio


Escritores como Sam Harris e Christopher Hitchens têm criticado duramente a religião. Para esses e outros autores, toda e qualquer crença é arbitrária, irracional e primitiva. Estariam eles corretos? No momento em que se deparam com textos da Bíblia que aplicam a pena capital a delitos aparentemente banais, mesmo cristãos modernos se veem cercados por questionamentos. Por que Deus Se mostrava tão rigoroso?

No capítulo estudado, encontra-se um exemplo desse rigor: o relato de alguém punido até a morte por apedrejamento. O crime? Ter ajuntado lenha no sábado, revelando claramente a intenção de acender fogo no dia santo (Êx 35:3). O flagrante levou o cidadão a ser detido. Após consultar a Deus, o povo agiu, cumprindo a sentença divina (Nm 15:32-36).

Seria isso um abuso da religião? Após o 11 de Setembro, boa parte dos críticos insiste que a religião (seja qual for) leva ao extremismo. O episódio do apedrejamento entraria nessa categoria?


A título de esclarecimento, consideremos a situação de Israel: 


(1) Para um povo recém-saído do Egito, acostumado à linguagem dura da escravidão, Deus tinha que agir com firmeza, principalmente quando revoltas do próprio povo surgiam com frequência. A disciplina se apresentava sempre necessária;

(2) Não nos deve impressionar o uso da pena capital, como se Deus fosse menos exigente hoje. Embora os fiéis não sejam usados atualmente como instrumentos de punição para os pecadores, Deus realizará pessoalmente um juízo, o qual resultará no extermínio perpétuo dos pecadores (Ap 6:15-17; 20:7-10); 


(3) Havia um efeito moral restritivo na punição; o propósito era impressionar a comunidade no deserto com a santidade da lei divina. Ao mesmo tempo, a pena causava reflexão sobre o tipo de resposta que se deveria dar às exigências de um Deus Santo – o que, por si só, ajudaria a desenvolver nova compreensão, tanto das leis, quanto da graça divina.


Levando em consideração o que foi dito acima, não deve nos escandalizar a firmeza do julgamento do transgressor do sábado. Alguns versículos anteriores já tratam de situações semelhantes: “Mas a pessoa que fizer alguma coisa atrevidamente, quer seja dos naturais quer dos estrangeiros, injuria ao Senhor; tal pessoa será eliminada do meio do seu povo, pois desprezou a palavra do Senhor e violou o Seu mandamento; será eliminada essa pessoa, e a sua iniquidade será sobre ela” (Nm 15:30, 31). Com palavras igualmente solenes, o apóstolo Paulo nos adverte a jamais tratar levianamente as obrigações espirituais, porque viver deliberadamente em pecado nos exclui da provisão feita pelo sacrifício de Cristo – e “horrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10:26, 31).


Borlas (pingentes) azuis


Uma vez que seguir nosso próprio coração e nossos olhos leva à infidelidade (Nm 15:39), o coração deveria ser circuncidado (Dt 10:16), para guardar a lei de Deus, a própria essência de Sua aliança com o povo salvo (Dt 4: 13 e 23). Vindos de uma cultura idólatra e cercados por pagãos, os israelitas certamente enfrentaram dificuldades em manter seus votos. A fim de prevenir a apostasia, o amoroso Pai decretou que cada israelita adotaria determinados instrumentos para se lembrar do compromisso firmado com Ele. Adotaram-se pequenas caixas com versículos bíblicos amarradas nos umbrais da porta, faixas amarradas no pulso e as borlas azuis (Dt 6:6-9).


A cor azul se associava a Deus. Assim, a arca era envolta em um pano dessa cor; cortinas azuis circundavam o tabernáculo; na roupa do sumo sacerdote havia uma parte azul, etc. O uso da borla azul servia para que cada filho de Abraão estivesse consciente da presença divina (Nm 15:37-41). 


Também ajudava a distinguir os judeus em ambientes pagãos, estimulando-os a não se conformarem com os costumes contrários à vontade do Senhor.


Como cristãos, temos de fixar-nos atentamente em Jesus, recapitulando Sua trajetória para salvar a humanidade, e, por meio de Seu exemplo, encontrar forças espirituais para prosseguir (Hb 12:2-3). Sua cruz – não o objeto em si, adotado por alguns cristãos – nos lembra constantemente a nossa identidade, porque simboliza o sacrifício e aponta para a reconciliação que Ele trouxe. Sejamos fiéis em nosso trajeto particular e coletivo rumo ao lar prometido.




Douglas Reis
Teólogo e Capelão do Colégio Adventista de Joinville


Extraído de: http://www.cpb.com.br/htdocs/periodicos/licoes/adultos/2009/frlic642009.html

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