Em todo agrupamento organizado ou institucionalizado, há sempre o risco de que indivíduos se levantem contra a liderança. Há sempre elementos que se deixam seduzir por algum espírito rebelde e dominador, que os arregimenta em torno do estandarte da revolta. Geralmente, os argumentos que servem como base para tal atitude gravitam em torno de direitos supostamente usurpados ou negados e que precisam ser readquiridos, acusações de supostas ações ditatoriais, absolutistas e centralizadoras, lançadas contra o líder, questionamento de sua capacidade, pretenso desejo de liberdade, reivindicação por democracia, entre outros. No fundo, o que realmente motiva muitos levantes rebeldes é a paixão exacerbada, invejosa, ciumenta, egoísta e doentia, pelo exercício do poder.
O povo de Deus não está livre desse perigo. Nunca esteve. Sua história é pontilhada de exemplos da manifestação dele. Um desses exemplos, que é o tema de nosso estudo esta semana, com suas trágicas consequências, é o embate entre o grupo liderado por Coré (Datã, Abirão e Om) contra Moisés e Arão.
Os revoltosos
Em seus ataques desferidos contra a liderança estabelecida por Deus, o inimigo nem sempre se vale de qualquer instrumento humano inexpressivo. Necessita de alguém inteligente, manhoso, hábil, sutil, manipulador, às vezes enérgico, que tenha influência sobre o ânimo de seus semelhantes e uma vontade férrea para levar avante seus projetos. Foi assim que ele escolheu Coré.
Coré era descendente de Levi (Êx 6:16, 18, 21; 1Cr 6:37, 38), “da família de Coate e primo de Moisés; era homem de habilidade e influência” (EGW, Patriarcas e Profetas, p. 395). Conforme se pode ver nos Salmos 42, 44-49, 84, 85, 87 e 88, os filhos de Coré eram responsáveis pelo ministério da música nos serviços do santuário. Datã e Abirão eram filhos de Eliabe. O nome de Datã não é mencionado em nenhuma outra parte do Antigo Testamento. Há quem pense que Om se tivesse separado do grupo conspirador, pois também não volta a ser mencionado.
A rebelião (Nm 16:1-14)
Quatro argumentos específicos serviram como combustível para a conspiração. Os rebeldes procuraram dar a entender que Moisés e Arão
(1) agiam como senhores sobre seus irmãos opondo-se aos seus direitos e privilégios como membros de uma santa congregação
(2) no meio da qual o Senhor estava e na qual
(3) cada um deles também era santo, consequentemente,
(4) qualificado para o sacerdócio.
Com a sutileza desses argumentos, os insurgentes conseguiram arregimentar 250 seguidores.
Nesse ponto, evidencia-se a verdadeira motivação de Coré: “Embora designado para o serviço do tabernáculo, descontentara-se com sua posição e aspirara à dignidade do sacerdócio. A concessão a Arão e sua casa do ofício sacerdotal, que anteriormente tocava ao filho primogênito de cada família, dera origem a inveja e dissabor...” (EGW, Patriarcas e Profetas, p. 305). Na verdade, uma reprise da atitude de Lúcifer, no Céu.
A egoísta pretensão do exercício de poder sobre o povo, atribuída a Moisés, não se harmoniza com o comportamento desse honrado servo de Deus. Uma análise superficial de sua história é suficiente para convencer qualquer estudioso imparcial das Escrituras, que, longe de usurpar dignidade e responsabilidade, ele tinha-se mostrado disposto a recusá-las quando lhe foram oferecidas. Aquele que tinha sido capaz de dizer a Josué: “Tens tu ciúmes por mim? Tomara todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o Seu Espírito!” (Nm 11:29) não alimentava sentimentos de apego ao poder nem de domínio sobre o povo.
A reação de Moisés ao ataque a ele desferido (v. 4) revela sua profunda decepção diante da falsidade das acusações. Moisés e Arão não se impuseram como líderes do povo. Foram, isto sim, investidos nessa função pelo próprio Deus. Portanto, Coré e seus aliados estavam em desavença contra o próprio Deus. Procuravam arruinar os servos comissionados por Deus, para exaltar a si próprios. Deve ser lembrado que os sediciosos não estavam marginalizados no trabalho de Deus; receberam seu encargo no templo, porém, queriam algo mais que julgavam superior ao que haviam recebido. Talvez fossem ignorantes ou esquecidos do fato de que, na causa de Deus, não existe algo como “posição superior à outra”. Existem ministérios distribuídos a bel prazer do Espírito Santo (1Co 12:11), todos importantíssimos dentro do plano de Deus.
Comentando as acusações lideradas por Coré, escreveu R. N. Champlin: “Na verdade, eles não queriam ‘distribuir o poder’. O que eles queriam era a saída de Moisés e de Arão. [...] Não estavam querendo ser delegados. Queriam apossar-se do mando. A maioria das revoltas, dentro e fora da igreja, por algum tempo avança sob falsas alegações como essa. [...] Nem toda a congregação do povo de Israel era santa no sentido sugerido por Coré. Havia os que tinham sido consagrados para cuidar das coisas santas do tabernáculo. Eles eram santos no sentido sacerdotal; mas colocar homens comuns para cuidar de funções sagradas era um abuso contra o intuito e as instituições determinadas por Yaweh. Assim sendo, Moisés defendeu o caráter especial da casta sacerdotal (Nm 16:7)... Até hoje, no seio da igreja, embora todos os crentes sejam sacerdotes, nem todos atuam no ministério, e nem todos são ordenados para ocupar funções ministeriais. Jesus é o Cabeça da igreja; os apóstolos originais foram os Seus primeiros-ministros. O Novo Testamento ensina certa ordem de ministério e de autoridade. Não se trata de uma situação em que cada qual age como bem quiser” (O Antigo Testamento Interpretado Versículo Por Versículo, v. 1, p. 666).
“O Senhor fará saber” (Nm 16:5)
Está claro que a rebeldia capitaneada por Coré, Datã e Abirão atingia, em última análise, os planos, propósitos e determinações de Deus. E os insurgentes não pouparam esforços para difundi-la entre o povo chegando às raias da insanidade, apresentando-lhe Moisés como tendo iludido a todos, tirando-os de uma suposta fácil existência no Egito. “O estado dos sentimentos entre o povo favorecia os desígnios de Coré. Na amargura de seu desapontamento, voltaram-lhes as dúvidas, inveja e ódio anteriores, e de novo dirigiram queixas contra o paciente líder. Os israelitas estavam continuamente a perder de vista que se encontravam sob guia divina. Esqueciam-se de que o Anjo do concerto era seu diretor invisível, e que, velada pela coluna de nuvem, a presença de Cristo ia adiante deles, e dEle Moisés recebia todas as instruções” (EGW, Patriarcas e Profetas, p. 395, 396).
Nesse estado, como poderia o povo decidir qual dos dois grupos estava certo? Moisés propôs o teste definitivo: “Amanhã pela manhã, o Senhor fará saber quem é dEle e quem é o santo que Ele fará chegar a Si; aquele a quem escolher fará chegar a Si” (Nm 16:5). Aqueles que apoiavam Coré levariam seus incensários cheios de incenso, assim como Moisés e Arão. Então, Deus revelaria quem era Seu escolhido.
Esse gesto de Moisés significava colocar o assunto em boas mãos. “O Senhor fará saber” – não diz uma palavra a seu respeito nem de Arão. A questão gira em torno da escolha do Senhor. Os 250 revoltosos foram postos face a face com o Deus vivo. Foram intimados a comparecer na Sua presença com seus incensários nas mãos, a fim de que todo o assunto pudesse ser inteiramente examinado e definitivamente resolvido diante desse grande tribunal. “Somente quem fosse escolhido pelo Senhor seria capaz de se aproximar dEle... Arão e seus filhos haviam sido escolhidos para o sacerdócio em Israel. A tribo de Levi se tornou uma casta sacerdotal e deveres tinham sido atribuídos aos membros daquela tribo. Yaweh tinha determinado todo aquele sistema, e nenhuma quebra seria tolerada”, diz Champlin (Op. Cit.).
O fato de Coré ter convidado o povo para testemunhar o evento indica que ele cria sinceramente na legitimidade do seu movimento e que contava com a vitória. Em lugar disso, um terremoto os tragou vivos, juntamente com familiares e os 250 aliados. Porém, o texto de Números 26:11 informa que nem todos os filhos de Coré morreram. De fato, nos tempos de Davi, são mencionados descendentes dele (1 Cr 6:22, 23, 38). Alguns salmos são atribuídos a esses descendentes.
Memoriais (Nm 26-36-40)
Diante dessa tão assombrosa manifestação divina, seria plausível supormos que a rebelião estivesse erradicada. Mas, não foi assim. Eleazar, filho de Arão, recebeu a incumbência de recolher os incensários dos rebeldes para que fossem transformados em lâminas a fim de cobrir o altar, permanecendo aí como memorial. O Antigo Testamento apresenta outros memoriais rememorativos do amor de Deus, Sua graça e as bênçãos da aliança (Gn 9:13; 17:10-17; Nm 9:1-4; 15:38-41; Js 4:3-9). Há também os memoriais do sábado e da Ceia (Êx 20:8-11; Nm 31:54; Mt 26:13; Lc 22:19). As lâminas sobre o altar eram memoriais dos resultados daquela insurreição e, consequentemente, permaneceriam como advertência para que ela não se repetisse. Apesar disso, “no dia seguinte, toda a congregação dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e contra Arão, dizendo: Vós matastes o povo do Senhor” (Nm 16:41).
“Então, falou o Senhor a Moisés, dizendo: Levantai-vos do meio desta congregação, e a consumirei num momento; então, se prostraram sobre o seu rosto” (Nm 16:44, 45). Essa foi outra oportunidade para Moisés. A congregação inteira estava outra vez ameaçada de imediata destruição. Tudo parecia irremediável. A longanimidade divina parecia ter-se esgotado, e a espada do juízo estava a ponto de cair sobre toda a assembleia. Então, julgava-se que no próprio sacerdócio que os rebeldes haviam atacado estava a única esperança para o povo; e que os mesmos homens que tinham sido acusados de matar o povo do Senhor eram os instrumentos intercessores diante de Deus em seu favor (Nm 16:45-48).
Aqui se torna bem claro que nada senão o sacerdócio podia valer a um povo rebelde e de dura cerviz. Arão, o sumo sacerdote de Deus, se ergueu entre os mortos e os vivos, e do seu incensário uma nuvem de incenso se elevou à presença de Deus. Aqui ele era figura de “Alguém” superior a ele mesmo – Jesus Cristo –, que havendo efetuado pleno e perfeito sacrifício pelos pecados do Seu povo, está sempre diante de Deus com toda a fragrância de Sua Pessoa e graça. O povo era devedor à intercessão de haver sido preservado das justas consequências da murmuração. Caso tivessem sido tratados meramente com base na justiça, tudo o que lhes restaria era a destruição. Porém, assim como na cruz, na intercessão de Arão e Moises, “a justiça e a paz de beijaram” (Sl 85:10).
Como diz “só existem dois tipos de pessoas neste mundo, os vivos e os mortos, não os fisicamente mortos, mas os mortos espiritualmente. [...] Jesus Se põe entre os vivos e os mortos; Ele é a divisa, o ponto de transição de um grupo para outro. Unicamente por meio dEle podemos passar da morte para a vida.”
O bordão que floresceu
Para que não restassem dúvidas quanto à liderança sacerdotal de Arão, Deus realizou mais um feito milagroso – Números 17.
O povo reagiu positivamente, afinal, embora o preço tivesse sido demasiadamente elevado. Permanece o fato de que o Senhor não mede esforços para salvar quem quer que seja.
Certamente, nenhum líder terrestre é perfeito e infalível. Se a perfeição fosse critério para liderança, não haveria nenhum líder, a não ser Jesus. Com a falta de perfeição, todo líder está sujeito a alguma crítica. E até podemos dizer que, em alguns casos, é o próprio líder humano estabelecido em alguma função quem peca contra Deus, ao tentar manipular coisas, situações e pessoas, a fim de se manter egoísticamente no poder, esquecido de que o controle de tudo pertence a Deus. Evidentemente, líderes com essa mentalidade, necessitam beber da inesgotável fonte da humildade exemplificada em Cristo Jesus (Fp 2:1-5). Somos apenas servos, independentemente da função que ocupemos.
Finalmente, os cristãos são chamados a encorajar os líderes espirituais que, embora humanos e falíveis, ainda fazem, pela graça de Deus, seu melhor para levar avante Sua causa. Isso é não apenas um encorajamento para o instrumento humano que lidera, mas também uma expressão de confiança de que o verdadeiro Líder, Jesus Cristo, aquele que faz a História, ainda está no controle.
Zinaldo A. Santos
Editor da Revista Ministério
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