quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O homem de romanos 7 (comentário ao estudo nº 08)




Romanos 7 tem sido considerado um dos capítulos mais controvertidos de Paulo. As principais questões envolvem o papel da lei no processo da salvação humana, o sentido em que o crente se considera morto para a ela (v. 4) em comparação com sua condição de morto para o pecado (6:11), o significado de “eu” na seção maior (v. 7-25), a referência de tempo imposta pelo emprego do presente do indicativo a partir do v. 14, e o aparente paradoxo entre a santidade da lei e a incapacidade humana de fazer o que é bom (v. 10-13).

Parte dessas questões é respondida na introdução da lição. Por exemplo, o “eu” na seção maior é o próprio apóstolo Paulo, ficando inconcluso, porém, se ele se referia a si antes ou depois de convertido. Particularmente, penso que o apóstolo estava falando de sua situação em qualquer época. Com isso, ele toma a si mesmo como ilustração do que ocorre com os demais seres humanos. Estamos perdidos e, contando apenas com nossas forças, jamais poderemos cumprir o que a vontade de Deus requer. Assim, o apóstolo continua dando seu recado àqueles que se iludem, em seus devaneios perfeccionistas, de que se podem recomendar diante de Deus através de suas obras.

Mas o que importa mesmo, como diz a lição, “
é que a justiça de Jesus nos cobre e que, em Sua justiça, estamos perfeitos diante de Deus, que promete nos santificar, nos dar vitória sobre o pecado e nos conformarà imagem de Seu Filho’ (Rm 8:29).”

O capítulo pode ser dividido em duas partes principais: a analogia do casamento (v. 1-6) e a situação desesperadora do ser humano frente à realidade da lei e do pecado (v. 7-25). Esta seção termina com um grito de desespero, “
desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”, mas seguido por um brado de triunfo: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor” (v. 24, 25).

I. Sujeitos à lei?

Na analogia do casamento, Paulo acrescenta um novo item às duas abordagens anteriores. Em 7:2-4 o apóstolo toca o assunto da primeira abordagem, morrer e ressuscitar (6:1-14), e em 7:6, o assunto da segunda, escravidão (6:15-22).

O novo item é o papel da lei em relação à antiga e à nova condição do crente, papel este discutido até o fim do presente capítulo. Devemos entender essa analogia à luz do contexto literário dos capítulos 6 e 8; e do contexto histórico, o empenho de Paulo no combate aos caluniadores que o acusavam de antinomismo, isto é, de agir e pregar de forma a promover e incentivar a prática do pecado e colocar em desprezo a lei de Deus. Isso nos ajudará a interpretar de maneira correta a aparentemente difícil declaração sobre o cristão e a lei nos v. 4-6.

Além daquilo que a lição afirma, e que tem seu lugar, acrescento o seguinte: qual é o sentido do termo lei usado pela segunda vez no verso 1? Lei de qualquer natureza, aplicável à realidade humana. A lei civil, que regulamenta a questão do casamento, pode estar sendo evocada nos versos 2, 3, ou então as normas bíblicas quanto a essa questão.

Verso 1 – Trata-se do “homem”, anthrópos, o ser humano, não importando se homem ou mulher.

“Tem domínio”, refere-se a um princípio geral, ilustrado em seguida de forma específica. Em suma, o argumento paulino é o seguinte: a lei sujeita o ser humano tanto tempo quanto ele viver; uma vez morto, a lei não mais tem prerrogativas sobre ele.

Estaria Paulo afirmando aqui que aquele que morreu para o pecado não tem dever algum diante da lei de Deus? É evidente que não, pois, nesse caso, ele estaria confirmando a acusação dos adversários de esposar o antinomismo. Estaria ele contrariando igualmente suas declarações positivas quanto à lei em outros pontos da argumentação (por exemplo 3:31)?. Como afirmei, é necessário ter o contexto em mente para não distorcermos as conclusões de Paulo. O empenho dele foi demonstrar que o fato de estar debaixo da graça não autoriza o homem a pecar, mas é o meio através do qual o homem pode superar o domínio do pecado. Já o fato de estar debaixo da lei, o que os legalistas requeriam e professavam, mantém o domínio do pecado, e, então sim, promove o ato de pecar.

Nesse aspecto, estar sob o domínio da lei equivaleria a continuar sob o domínio do pecado, pois a lei não confere ao pecador poder nenhum para superar o mal. É necessário então que o homem “morra” para toda forma de domínio da lei e “ressuscite” para o domínio da graça.  Nos termos do capítulo 6, isso seria equivalente a morrer para o pecado (para que este não tenha mais domínio sobre o ser humano) e ressuscitar para a justiça.

É como já foi referido: qualquer posicionamento negativo de Paulo em relação à lei tem que ver não com a lei em si, mas com o legalismo, o uso indevido da lei como recurso de salvação. No caso aqui, as demandas da lei cessam como forma de salvação para o homem que morreu em Cristo. No capítulo 8, então, fica explícito (ver a próxima lição) que isso ocorre simultaneamente ao fato de ele se tornar sujeito a essas demandas, naturalmente como consequência de ter morrido para o pecado (e passar a desfrutar a salvação), e não como meio de se obter a salvação.

O que faz com que um ser humano seja salvo é a graça de Deus, mas isso resulta em submissão à Sua vontade, a qual está retratada na lei em seu mais profundo sentido. Para Paulo, o homem que não se sujeita à lei de Deus é precisamente aquele que ainda é carnal, que ainda não morreu para o pecado, não importando se ele está debaixo da lei, ou seja, se é legalista, ou não (8:5-8).

Versos 2, 3 – A mulher casada é tomada como ilustração do princípio geral exposto no primeiro verso. A mulher está ligada ao marido enquanto ele viver. Essa ligação é determinada por força de lei, segundo a qual ela não pode se unir a outro sem incorrer no lapso do adultério.

O ponto capital na ilustração: a morte do marido libera a esposa do vínculo matrimonial com todas as suas implicações geradas por lei.

Verso 4 – A aplicação da ilustração apresenta uma aparente dificuldade: na primeira parte do verso é o cristão que morreu, mas, na segunda, ele está suficientemente vivo para se unir a “outro marido”. Observe a dificuldade na seguinte comparação:

ILUSTRAÇÃO
O QUE ESPERÁVAMOS
O QUE PAULO DISSE
mulher casada está ligada pela lei ao marido enquanto ele viver
mulher é símbolo do cristão
Está implícita a ideia: mulher simboliza o cristão
somente após a morte do marido a mulher fica livre da lei conjugal
quem deve morrer é o antigo “marido” do cristão
quem é dito ter morrido é o cristão, e não o antigo “marido”
livre da lei, pela morte do marido, a mulher pode contrair novas núpcias
o cristão se vê livre para ter um novo “marido”: Cristo
morto para a lei, o cristão pode pertencer ao novo “marido”: Cristo

ILUSTRAÇÃO: morte do marido Þ liberação da esposa
APLICAÇÃO: morte do cristão Þ liberação do cristão

Se a mulher é tomada como símbolo do cristão, é inevitável que, na aplicação, quem morre é a mulher, pois Paulo fala do cristão como tendo morrido. Teria ocorrido uma inversão ou deslocação de significado quando a ilustração foi aplicada? Se isso ocorreu, como explicar o que em seguida é afirmado: a mulher (isto é, o cristão) está viva para “casar-se outra vez? Paulo teria re-invertido agora a aplicação?

A solução para esse aparente impasse emerge quando consideramos dois pormenores:

(1) os versos 2 e 3 são um exemplo específico do princípio geral apresentado no verso 1. Ali, a morte é de um ser humano e não especificamente do marido ou da esposa. A aplicação é feita primeiramente voltada para o verso 1, e secundariamente para os versos 2 e 3.

(2) o marido não representa a lei, como se pode ver nos próprios versos 2 e 3, onde uma distinção é feita entre a lei e o marido; daí o fato de que, na aplicação, não é a lei que morre. A única conclusão coerente é que o crente é tanto o “marido” que morre na qualidade de “velho homem”, como a mulher que se vê liberada para pertencer a outro marido.

O “marido” que deve “morrer” somos nós mesmos na situação de perdidos e sem Cristo, isto é, nosso ser consagrado ao pecado. Veja que, em 6:6 é o “velho homem” que morre, nós mesmos, e a aplicação no verso 4 se torna plausível com o argumento de Paulo.

Repetimos: não é a lei que morre. A lei matrimonial continua a existir em toda a sua força depois que uma mulher ficar viúva. A lei apenas não tem atribuições sobre ela, pois não mais é casada. Mas a exemplo do que ocorre também na analogia paulina da escravidão, em que o homem é livre apenas para escolher de quem será escravo, aqui a mulher está livre apenas para escolher quem será seu novo marido. 

Então, o cristão “casa-se” com Cristo, e a lei “conjugal” volta a ter prerrogativas sobre ele, pois é a lei que regulamenta os termos do casamento. O que faz a diferença, portanto, é o “marido” que temos. O papel da lei é exigir que assumamos as implicações de nossa união matrimonial. Se estamos ainda “casados” com o “velho homem”, então, a lei nos obriga a encarar a morte eterna como condenação. Se, todavia, estamos “casados” com o “novo homem”, as implicações da lei serão condizentes com esse tipo de casamento: receberemos a vida eterna como consequência, pois o destino do novo homem é essa qualidade de vida. No vínculo conjugal, marido e mulher formam uma só carne (Ef 5:31, 32); o que ocorre com um, ocorre com o outro. Assim é no casamento espiritual com Cristo.

“Morrestes relativamente à lei”, literalmente: “fostes mortos para a lei”, ou seja, todos os reclamos de condenação que a lei impunha ao nosso “velho homem”, isto é, a nós mesmos antes de nosso “casamento com o novo marido”, cessam com a morte desse velho homem, como Paulo já antes declarou: “quem morreu, justificado está do pecado” (6:7). Estamos agora libertos da condenação da lei e podemos “nos casar” com o “novo homem”, que na verdade é o próprio Cristo (ver Ef 4:22-24; Cl 3:9, 10; Rm 13:14; Gl 3:27). E “casados” com Ele, a realidade é bem outra. Nada disso é possível enquanto continuamos “debaixo da lei”, ou “debaixo do pecado”, e não “debaixo da graça”.

“Pelo corpo de Cristo”, lembra a experiência de morrer com Cristo, ser sepultado e ressuscitar com Ele (6:3-6), como efetivação da possibilidade de casamento com o “outro” marido.

“Para pertencer a outro”, ou seja, outro “marido”. Cristo é identificado como aquele que ressurgiu dentre os mortos. Com essa forma de identificação de Cristo, Paulo afirma que o propósito do crente ao “morrer” é uma união com Cristo.não apenas temporária, mas perene Além disso, está explícita a ideia de que só podemos nos unir genuinamente a Cristo se a antiga união for desfeita. Caso contrário haverá “adultério” (v. 3) e Cristo não aceita um “relacionamento adúltero”.

 “Deste modo frutifiquemos para Deus”, literalmente “produzamos frutos para Deus”. A expressão estabelece a finalidade das novas núpcias. Fica implícita a ideia de que as boas obras não apenas são esperadas e naturalmente ocorrem na vida cristã, mas são possíveis e inevitáveis mediante a união com Cristo.

Verso 5 - “quando vivíamos segundo a carne” (ou quando vivíamos no pecado), corresponde ao tempo anterior à conversão, ou à união com o novo “marido”. Aqui é referida a experiência de uma vida totalmente votada ao pecado, condição própria apenas daqueles que desconhecem o evangelho.A palavra “carne” tem um sentido eticamente depreciativo, o que não acontece em outros textos paulinos, Gálatas 2:20 entre eles, em que o sentido de “carne” não é ético, mas físico.

Neste, e no verso seguinte, Paulo contrasta as duas fases da vida do cristão, anterior e posterior à conversão, e reforça o fato de que a “nova vida” deve ser assumida com suas implicações. Está clara a ideia de que, antes de crer, o homem “vive segundo a carne”, ou seja, em subordinação aos ditames da natureza carnal e, portanto, como escravo do pecado; e isso não importando se a pessoa tenta guardar a lei (legalismo) ou não (liberalismo). Uma mudança radical dessa condição evidencia a conversão.

 “Paixões da carne”, seria equivalente, no plural, às paixões que se expressam em atos específicos de pecado.

“Postas em realce pela lei”, literalmente “através da lei”, reafirma de qualquer forma o conceito paulino do papel da lei no processo da salvação humana: realçar o pecado e, consequentemente, a necessidade de um Salvador. Mais uma vez se vê que, em lugar de resolver o problema do pecado, a lei incrementa ainda mais o problema; isto é particularmente abordado a partir do verso 7.

Verso 6 - “Libertados da lei” corresponde a “mortos para a lei” (ver comentário do v. 4), tanto quanto “mortos para o pecado” corresponde a “não ser escravo do pecado”, no cap. 6.

“Estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos”, literalmente “estávamos retidos, presos, vinculados.” No escopo da ilustração, é a lei conjugal que vincula, que prende a mulher ao marido. Na aplicação, o pecado se valeu da lei para nos prender ao antigo marido (v. 8-11) e nos subjugar com as consequências desse vínculo. Uma vez morto o antigo marido, essa força vinculativa desaparece.

“De modo que”, indica resultado ou finalidade. O primeiro sentido parece mais próprio. Como resultado de estarmos mortos para o pecado, podemos servir na novidade do Espírito, ou seja, a novidade que se torna possível através do ministério do Espírito Santo em favor do crente.

Paulo questiona o mau emprego que o judaísmo fazia da lei atribuindo-lhe virtude salvífica e estabelecendo uma justiça própria em lugar da justiça de Deus (Rm 10:3). Para o grande apóstolo, a lei de Deus, como expressão de Sua vontade, não se opõe ao Espírito Santo, pois em 7:14 é declarado que a lei é espiritual.

Mas quando alguém usa a lei, ou qualquer outra coisa, como forma de salvação, o faz em oposição ao Espírito de Deus, que é aquele que efetiva no pecador a salvação operada por Deus através do sangue de Seu Filho. Com efeito, a lei, tomada como forma de salvação, é ministério de condenação, é letra que mata, e não espírito que vivifica.

II. É a lei pecado?

Paulo continua a combater a acusação de que era antinomista. A esta altura de sua argumentação, poderia ocorrer um mal entendido quanto ao que ensinava, um mal entendido que serviria ao propósito dos adversários. Afinal, Paulo acabara de afirmar que a lei realça o pecado (v. 5) e, o que era pior, que o cristão havia morrido para a lei (v. 4); então, comparando com o que ele afirmara em 6:11 (o cristão deve considerar-se morto para o pecado), o pressuposto seria que Ele estava equiparando a lei com o pecado.

Paulo se apressou em desfazer quaisquer equívocos dessa natureza, respondendo categoricamente à pergunta que ele mesmo formulara: “É a lei pecado? De modo nenhum” (v. 7), para, então, deixar claro qual é, segundo sua teologia, o relacionamento da lei com o pecado: ela o denuncia, e, nesse sentido, incrementa-o; não se saberia, por exemplo, que cobiça é pecado se a lei não dissesse: “não cobiçarás.”

Por que razão Paulo escolheu precisamente o décimo mandamento para ilustrar o que vinha afirmando? Bem, avancemos um pouco mais no raciocínio:

É assim que o pecado se vale da lei para “despertar toda a sorte de concupiscência” (v. 8); de fato, quanto mais se conhece a lei, mais se sabe como pecar, ao tempo em que mais consciência se obtém de quão longe a pessoa está do ideal de Deus, daquilo que Ele requer. Na verdade, é um conhecimento deficiente, superficial da lei que abre espaço para o legalismo, para o farisaísmo, para operfeccionismo, para a triste ilusão de que o perdido pode atingir total harmonia com os mandamentos. Era assim que Paulo, o doutor da lei, se imaginava antes de realmente conhecer a lei (ver Fl 3:6).

E maior conhecimento dela não pode ser auferido senão considerando-a a luz da qualidade de vida que Jesus viveu. O exemplo que nos legou é a lente que desdobra a lei, que revela à nossa embotada consciência os parâmetros infinitos dela. Segundo Sua vida, que outra coisa não é senão a mais perfeita expressão do Seu ensino e da própria lei, os imperativos desta excedem infinitamente a literalidade do comando em si. Por exemplo, Jesus afirmou que  os mandamentos “não matarás” e  “não adulterarás” não requerem o ato do homicídio e do adultério como forma exclusiva de transgressão. Esta decorre do simples sentimento pecaminoso (Mt 5:22, 28) sediado no coração (15:19)! Foi por isso que Paulo escolheu um mandamento que condena mais que o mero ato pecaminoso, o décimo, cuja transgressão ocorre no coração antes que num comportamento formal. Tudo isso realça a natureza espiritual da lei, à que ele faz referência no verso 14.

Uma vez convertido, Paulo obteve o conhecimento da lei através de uma demorada apreciação de Cristo. Então, ele passou a conhecê-la em toda a sua extensão. Antes, como fariseu, ele conhecia apenas a externalidade, a formalidadeda lei, e isso é nada quando comparado ao exemplo de obediência legado por Jesus. Foi por isso que o apóstolo afirmou que “outrora”, ou seja, antes de conhecer Jesus como Salvador, ele estava “sem lei”, e que, exatamente por isso, “vivia” (v. 9); descansava na ideia de que tudo estava bem com ele, pois chegou ao ponto de se imaginar um “irrepreensível” diante da lei (Fl 3:6).

Mas quando ele conheceu a lei como ela é em Cristo, isto é, na extensão de seus imperativos e implicações, então, face à Sua dessemelhança com Jesus, ele se viu como realmente era, um pecador perdido e desesperadamente necessitado da graça. Por isso ele declarou: “sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu morri. E o mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo mandamento se me tornou para morte” (v. 9, 10). Com efeito, Deus, ao outorgar Sua lei ao homem, visava que este, conhecedor de Sua vontade, continuasse obediente e assim vivesse (cf. 10:5). Mas no momento que ele se tornou um transgressor, a lei não poderia fazer outra coisa senão condená-lo, submetê-lo à punição do seu pecado: a morte (6:23).

III. A lei santa

Pergunto: em que sentido “a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom”?. Respondo que é em função de tudo aquilo que Paulo apresenta até aqui, como demonstrado na cláusula introdutória de suas palavras no verso 12: “por conseguinte”, ou seja, “portanto”, “em vista do exposto”, “como consequência”, etc.

Pelo que comentei na lição de ontem, é impossível não considerar a lei santa, justa e boa. Isso é assim, a partir do próprio fato de que ela revela e incrementa o pecado, isto é, expõe o pecado em sua malignidade máxima, ou como “sobremaneira maligno” (v. 13). Como um bom médico não encobre do paciente a doença que o está acometendo, assim a lei deixa claro ao pecador a seriedade do seu pecado. Mas, ao contrário de um bom médico que pode, através de adequado tratamento, sanar a doença do paciente, a lei nada pode fazer em favor do pecador perdido; esse encargo é exclusivo da graça.

De qualquer forma, porém, é o fato de Deus ser santo que O leva a não compactuar o mínimo que seja com o pecado. Assim é com a lei; ela revela o pecado em toda a sua hediondez precisamente por ser plenamente santa.

Portanto, ela é santa porque condena o pecado e os que o praticam. O mandamento é “santo” porque determina algo consoante com o caráter de um Deus santo, algo que é exatamente o oposto do pecado; é “justo” porque justiça é fazer o que é direito, e o mandamento determina o direito a ser cumprido; finalmente é “bom” porque seu propósito original é a preservação da vida e porque, “embora enferma pela carne” (8:3), a lei ainda prescreve os deveres e obrigações para com Deus e para com o semelhante, o que apenas resulta em bem.

No verso 13, Paulo prossegue se defendendo da acusação de antinomismo. Ele acabara de dizer que o mandamento é bom, e então pergunta se o bom se lhe tornou em morte. Novamente, sua resposta é um contundente “de modo nenhum”. É o pecado o causador de tudo, pondera ele. E o pecado se mostra sobremaneira maligno ao se valer de uma coisa boa para causar a morte. Em outras palavras, o pecado leva o pecador a infringir nada menos que a norma que prescreve a vida (uma norma, portanto, boa). Assim, o transgressor se vê condenado à morte.

Nos versos 14 e 15, Paulo insiste que, de fato, não é a lei  o problema, mas o pecado. Por ser santa, justa e boa, a lei é espiritual; todavia ele era carnal, “vendido à escravidão do pecado”, e a maior evidência desse fato é que ele queria fazer o que preferia, isto é, o bem (afinal “segundo o homem interior”, ele tinha “prazer na lei de Deus” (v. 22), mas acabava fazendo o que detestava, ou seja, o mal. Ele desenvolveu esse impasse nos versos 18-24, de que trata a lição de quarta e de quinta-feira.

Paulo age de duas formas bastante precisas na maneira como pondera em Romanos 7. Ele exalta a lei de Deus e a coloca num pedestal máximo. Pelo que diz, nenhum mal pode ser a ela atribuído. Sua qualidade divina é suficientemente exposta para que não haja a mínima dúvida a esse respeito. É em harmonia com suas afirmações que declaramos ser a lei o transcrito do caráter de Deus.

E exaltando assim a lei, Paulo deixa claro que não há a mínima chance de salvação para o transgressor a não ser através de Jesus Cristo. Afinal, é o transcrito do caráter de Deus que foi violado pelo homem. Assim, não pode haver salvação pela lei de Deus, só pelo Deus da lei.

Como diz a lição, “por ser carnal, Paulo precisava de Jesus Cristo. Só Jesus Cristo podia remover a condenação...Só Jesus Cristo podia livrá-lo da escravidão do pecado.” Ele “estava tentando mostrar aos judeus que [eles] precisavam do Messias. Ele já havia mostrado que a vitória só é possível debaixo da graça (Rm 6:14). Esse mesmo pensamento é novamente enfatizado em Romanos 7.”

IV. O homem de Romanos 7

O homem de Romanos 7 é o próprio Paulo. Ele se valeu de sua condição e experiência para ilustrar a condição e experiência de todos os seres humanos, não importando o que professam. No começo da epístola ele já afirmara que “todos pecaram” (3:23) e que “todos, tanto judeus como gregos [gentios], estão debaixo do pecado” (3:9). Agora ele demonstra esse fato de uma forma bastante prática. 
Não importando a estima que alguém tenha pela lei (o caso dos judeus), como ele, Paulo, estimava a lei, sua condição era simplesmente desesperadora, pois ele não podia, por sua própria força, cumprir a justiça da lei e viver. Umas cinco ou mais vezes ele reiterou sua determinação de fazer o bem (isto é, de cumprir a lei que é boa) tão somente para se desapontar com sua incapacidade para tanto. Tudo porque ele era “carnal, vendido à escravidão do pecado” (v. 14).

Essa é precisamente a situação de toda a humanidade (que Paulo divide em “judeus e gentios”) porque todos estão “debaixo do pecado”, e estar debaixo do pecado é ser escravo dele. A solução está em se reverter esse quadro de escravidão, e tal reversão é impossível sem que haja uma libertação correspondente. Paulo deixa claro em Romanos que tal libertação só é possível através de Jesus.
Observemos alguns pontos interessantes e ao mesmo tempo importantes que se encontram no texto da lição de hoje (Rm 7:16-20):
Verso 16 – “...consinto com a lei, que é boa.” Considerando que Paulo desejava praticar o bem (v. 18, 19, 21), ele consentia, pelo próprio fato de reconhecer que aquilo que fazia não era o que ele finalmente queria fazer, que a “lei é boa.” Portanto, uma vez mais  o problema não é a lei, mas é o pecado.

Verso 17 – “... quem faz isto já não sou eu, mas o pecado...” (também o v. 20).  Aparentemente, Paulo se eximia de responsabilidade pelo pecado que praticava, colocando a culpa no próprio pecado que nele residia; todavia, isso é só aparente.

Por exemplo, ele diz que, em sua carne “não habita[va] bem algum” ao tempo em que se identificava com ela (“em mim, isto é, na minha carne”, v. 18); já ele afirmara “[eu] sou carnal” (v. 14). Ademais, em todos os textos em que ele confessou sua incapacidade de fazer o bem, ele sempre se identificou com essa incapacidade, declarando-se o agente que praticava o mal (v. 15, 16, 19). Tudo o que Paulo expõe nos versos 17 e 20, portanto, é que o pecado era mais poderoso que ele, o que o tornava desesperadamente necessitado de algo que viesse em seu socorro para o salvar, algo ainda mais poderoso que o pecado. Este algo é a graça.

Assim, face ao plano da redenção, os seres humanos terão, eles mesmos, que responder diante de Deus. Eles morrem e ressuscitarão um dia para receber a recompensa eterna em termos de salvação ou perdição. Mas os que estiverem perdidos então, assim estarão não porque o pecado que neles estava foi mais poderoso que eles, mas porque eles rejeitaram a graça ainda mais poderosa, que foi colocada à disposição deles. É por isso que, à luz do evangelho, a substância do pecado é a incredulidade, ou, mais precisamente, a rejeição de Cristo como Salvador (Jo. 16:9).

Versos 17 e 20 – “... o pecado... habita em mim.” Para Paulo, alguém é pecador não apenas por praticar pecados, mas porque já possui uma natureza pecaminosa antes de cometer o pecado. Essa natureza o faz pecador, e a trazemos desde nove meses antes de nascer (Sl 51:5). O pecado, portanto, não é apenas um simples ato individual, mas, como John Robinson lembra, se acha “entretecido na contextura da própria humanidade” (Wrestling with Romans, p. 62).Nossa própria natureza pecaminosa, que herdamos de Adão, é, ela mesma, pecado, e, portanto, inimizade contra Deus (Rm 8:7). Essa é outra razão por que salvação só é possível pela graça através de Jesus Cristo.

Verso 18 – “...em mim... não habita bem nenhum”. Segundo esse texto, não há como supor que o ser humano reúna de si mesmo nenhuma qualificação que o recomende a Deus. Aqui são derribadas quaisquer pretensões de bondade inerente por quem quer que seja. A teoria do mérito próprio alegada pela Babilônia apocalíptica é de origem diabólica para desviar o incauto do correto processo de salvação. E por aí alardeiam os defensores da nova era afirmandoque tudo o que alguém precisa fazer para superar suas limitações é liberar as energias positivas que se encontram dentro de si mesmo. Fantasia pura!

Verso 18 – “...o querer o bem está em mim; não porém o efetuá-lo.” O texto deixa claro a incapacidade humana para a prática do bem na forma como a lei requer. Há, todavia, um texto do próprio Paulo que demonstra como o bem desejado pode ser finalmente efetuado na vida do filho de Deus: Filipenses 2:13 – “... Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade.” Aí está o segredo da vitória!

V. Livres da morte

A grande questão que se depara ao estudante de Romanos 7 é se Paulo está falando de si como converso ou como não converso. A questão aparece na lição de sexta-feira (ver a primeira das três “perguntas para consideração”), mas ficou sem resposta.

No capítulo, existem evidências para ambas as situações. Exemplo: como pode um converso afirmar que é “carnal, vendido à escravidão do pecado”? (v. 14) E como é possível para um não converso afirmar que tem “prazer na lei de Deus”, e que, em sua mente, é escravo dela? (v. 22, 25).

Bem, como afirmei na introdução deste comentário, particularmente penso que o apóstolo estava falando de si mesmo com ser humano, pecador, portanto de sua situação em qualquer época. Mas ele usou o presente do indicativo a partir do verso 15 para enfatizar que a graça continua sendo extremamente necessária mesmo para aquele que se torna seguidor de Cristo, para aquele que participa da Sua salvação (o tempo verbal faria referência ao apóstolo em sua presente condição, isto é, no momento em que estava escrevendo aos romanos; portanto, um convertido).

Não precisamos da graça apenas para reconhecimento de nosso estado de perdição e, então, para nos convertermos a Jesus. Continuamos dela carecendo enquanto a vida cristã prosseguir. A graça não nos providencia apenas justificação pela fé, mas igualmente santificação, que deve se desenvolver em nós ao longo da vida. Aliás, continuaremos carecendo da graça não apenas até aquele acontecimento que chamamos de fechamento da porta da graça (em que pese o empenho de infelizes perfeccionistas quererem provar o contrário), mas até o momento da transformação de nosso corpo corruptível e mortal para um incorruptível e imortal; ou seja, até o dia da volta de Jesus.

Se Paulo fala na qualidade de convertido, como então entender a afirmação de que ele era carnal, e que, mesmo preferindo fazer o bem, acabava fazendo o mal?

Bem, aceitar Jesus como Salvador não significa que automaticamente deixamos de viver na carne para viver exclusivamente no espírito, pois o pecado permanece em nós. A vida prossegue “na carne” com a diferença de vivermos agora “pela fé no Filho de Deus” (Gl 2:20). Há, portanto, uma temporária convivência de duas forças antagônicas no seguidor de Jesus, a “carne” e a “fé” (para não dizer a “carne” e o “espírito”). É temporária porque esta situação se estenderá até a volta de Jesus (ou até que descansemos no sono da morte).

Em outros termos, a vida cristã é uma batalha, o que a lição chama de “conflito contra as forças do pecado.” Com efeito, Paulo afirmou: “Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne...” (Gl 5:17). Para que lado a vitória penderá depende da atitude do cristão. Deus, naturalmente, coloca à disposição de todos os recursos necessários para que a vitória seja do bem; mas isso requer igualmente a atitude humana.

É por isso que o apóstolo coloca diante de todos o imperativo: “Andai no Espírito, e jamais satisfareis à concupiscência da carne” (v. 16). Diz também, falando de seu próprio empenho: “... esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão...” (1Co 9:27). E ainda mais: “Os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências” (Gl 5:24). O problema é que constantemente “a carne” intenta descer da cruz e readquirir o domínio perdido, daí a batalha da vida cristã. Constante vigilância é imprescindível.

Havendo entendido isso, voltemos a Romanos 7. A chave para a compreensão do impasse aqui exposto, do convertido que deseja fazer o bem e acaba fazendo o mal, situa-se no verso 25 onde o apóstolo afirma que, de si mesmo, ele era escravo “da lei do pecado”, que, segundo ele, residia nos seus membros, ou seja, em sua carne, e guerreava contra a lei de sua mente (v. 23), ou consciência. A fórmulade si mesmo, ou “de mim mesmo” como consta no texto, diz tudo: Quando Paulo, e essa é a realidade de qualquer cristão, se esquecia dos recursos deparados por Deus para ele, e contava apenas consigo mesmo para se conduzir na batalha cristã, o resultado era um inevitável fracasso. Isso o levou a exclamar: “Desventurado homem que sou!” (v. 25). Mas quando ele se lembrava de que a batalha não era somente dele, mas também de Deus e do Senhor ele se valia, a vitória estava garantida. Isso o levava a exclamar: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor”! (v. 25).

Assim, em vista do que Deus tem feito e do que nós devemos fazer, não é correto se escudar nesse capítulo de Paulo como desculpa para a prática do pecado. A lição de ontem afirma: “
Infelizmente, deixando de renovar diariamente sua dedicação a Cristo, muitos cristãos, na realidade, estão servindo ao pecado, por mais que abominem admitir isso. Racionalizam que estão passando pela experiência normal de santificação e que simplesmente ainda têm um longo caminho a percorrer. Assim, em vez de levar os pecados conhecidos a Cristo e pedir-Lhe a vitória sobre eles, escondem-se atrás de Romanos 7, que lhes diz, pensam eles, que é impossível fazer o que é certo. Na realidade, esse capítulo está dizendo que é impossível fazer o certo quando a pessoa está escravizada ao pecado [ou quando se encontra sozinha, como estamos ponderando], mas a vitória é possível em Jesus Cristo.
Sim
, a vitória é possível em Jesus Cristo. Louvado seja o Seu nome!

Autor: José Carlos Ramos Pastor e professor do SALT ora jubilado. Engenheiro Coelho, SP



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