quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Todo o resto é comentário (comentário ao estudo nº 13)





Foram reservados para o último estudo do trimestre os três capítulos finais de Romanos. Como afirmei na introdução do comentário anterior, Paulo, dos caps. 12:1 até 15:13, comenta a prática vivencial da salvação (o resultado ético da justificação pela fé) traduzida, em qualquer situação, num comportamento moral semelhante ao de Jesus.

Havendo considerado Romanos 12 e 13 no estudo anterior, o presente é quase toda sobre o capítulo 14; apenas o estudo de quinta-feira aborda os dois seguintes, sem dúvida devido à limitação de tempo e espaço, pois, nos primeiros 13 versos do capítulo 15, o apóstolo apresenta Jesus Cristo como o exemplo máximo do relacionamento cristão, o que mereceria uma atenção adicional.

O título do estudo pressupõe que o conteúdo essencial de Romanos situa-se nos primeiros onze capítulos (isso seria com especial ênfase para 3 a 8). O que vem depois é apenas “comentário”, no sentido de algo periférico, próprio para uma discussão mais formal.
Todavia, não imaginemos que esse material seja de relevância secundária, pois trata de relacionamento humano, e aí ele se torna também essencial. “A atitude que os cristãos mantinham uns com os outros no trato desses assuntos [os dos capítulos 3 a 8] era, sim, essencial.”

I.  O irmão fraco
Em Romanos 14, o apóstolo discute o relacionamento dentro da congregação. Ele já o fizera de uma forma geral no capítulo 12, não exclusivamente, mas especialmente nos versos 3-8. Agora, ele se voltava a circunstâncias específicas que punham em risco a harmonia e o espírito afetuoso que os membros deveriam nutrir. As divergências ali correntes, é claro, não se fazem sentir em nosso meio, pois os costumes hoje são outros; entretanto, as orientações a respeito, feitas por Paulo (particularmente as registradas nos v. 1, 5c, 7-15, 18–15:7), não encontram barreiras de tempo ou de espaço – são aplicáveis em qualquer contexto, pois as reações humanas a situações de conflito continuam as mesmas: censura, intolerância, juízo temerário, presunção, e coisas do tipo.

Dois pontos controvertidos são abordados no capítulo: abstinência de certos alimentos e observância de determinados dias. A primeira envolvia a questão das carnes previamente sacrificadas aos ídolos (Paulo estava escrevendo de Corinto, onde este impasse também se fazia presente [ver 1Co 8; 10:14–11:1]). A segunda tinha a ver com as práticas litúrgicas do judaísmo. Embora a exortação apostólica seja o estudo de segunda e terça, deve-se notar que ela é feita face às duas controvérsias e não apenas à primeira.

Não podemos esquecer que a congregação de Roma era composta de judeus e gentios, dois grupos com culturas opostas, sendo as desavenças suscitadas, sem dúvida, pelo espírito excessivamente escrupuloso dos primeiros. Isso não quer dizer que a exortação apostólica do v. 1 seja direcionada apenas ao elemento gentio. O “
débil na fé” podia, de fato, ser o judeu que ainda não se desvencilhara completamente de todos os elementos da antiga vivência religiosa; que imaginava que só a fé seria insuficiente e que ela precisaria do concurso de certas práticas para o alcance de seu propósito, o que teria a ver ainda mais com a segunda questão.

Isso, naturalmente, era muito próprio do judeu. Nesse caso, o pietismo judaico estaria se impondo outra vez, como já ocorrera no princípio da pregação aos gentios (
Alguns indivíduos que desceram da Judéia ensinavam aos irmãos: Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos - At 15:1) e mais tarde entre os cristãos da Galácia e de Colossos (ver as epístolas endereçadas a eles). Portanto, os judeus cristãos de Roma, por uma questão de consciência, limitavam-se a comer legumes (v. 2).

O “
débil na fé” poderia também ser aquele gentio que não rompera radical e definitivamente com os antigos costumes, e ainda se via tentado pela sedutora influência do culto pagão. Aquele que não era forte na fé, poderia, eventualmente, vir a se contaminar se comesse daquelas carnes; por causa disso, se limitava, por precaução, a comer “legumes” (v. 2).

Esse contexto histórico deve ser levado em conta se não quisermos interpretar equivocadamente as palavras de Paulo. Dizer que, nesse capítulo, o apóstolo afirma que a distinção entre animais limpos e imundos caducou, o que facultaria o comer carne de qualquer espécie, é responsabilizá-lo por algo que ele não disse. Essa distinção, objetivamente estabelecida pelas normas de Levítico 11 e Deuteronômio 14, antecede o próprio código mosaico, ocorrendo já no tempo de Noé (ver Gn 7:2, 8; 8:20); Paulo, então, não poderia simplesmente ignorá-la. Repetindo, o assunto aqui é o consumo da carne sacrificada aos ídolos, não o uso indiscriminado do alimento cárneo.

É verdade que o porco e, outros animais considerados imundos, eram sacrificados aos deuses; isso, entretanto, ocorria num paganismo mais antigo e não dentro da cultura greco-romana mais recente, em meio à qual o cristianismo se desenvolveu. Pelo que o livro História da Alimentação afirma no capítulo 5, “Sistemas alimentares e modelos de civilização”, e no 6, “A carne e seus ritos”, sabe-se que “as plantas e a agricultura” distinguiam o homem civilizado do bárbaro, o qual dava mais valor ao alimento cárneo. “A ideologia alimentar greco-romana foi fundada sobre os valores do trigo, da vinha e da oliveira. Bois e carneiros eram preferencialmente destinados ao sacrifício aos deuses.” (Extraído do site www.vegetarianismo.com.br). Uma vez sacrificados, grande parte da carne desses animais era conduzida ao mercado para consumo, mesmo porque a vendagem revertia em lucro para os templos.

11  Quando as multidões viram o que Paulo fizera, gritaram em língua licaônica, dizendo: Os deuses, em forma de homens, baixaram até nós.
12  A Barnabé chamavam Júpiter, e a Paulo, Mercúrio, porque era este o principal portador da palavra.
13  O sacerdote de Júpiter, cujo templo estava em frente da cidade, trazendo para junto das portas touros e grinaldas, queria sacrificar juntamente com as multidões.
14  Porém, ouvindo isto, os apóstolos Barnabé e Paulo, rasgando as suas vestes, saltaram para o meio da multidão, clamando:
15  Senhores, por que fazeis isto? Nós também somos homens como vós, sujeitos aos mesmos sentimentos, e vos anunciamos o evangelho para que destas coisas vãs vos convertais ao Deus vivo, que fez o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles;
16  o qual, nas gerações passadas, permitiu que todos os povos andassem nos seus próprios caminhos;
17  contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o vosso coração de fartura e de alegria.
18  Dizendo isto, foi ainda com dificuldade que impediram as multidões de lhes oferecerem sacrifícios. Atos 14:11-18

Esse testemunho histórico se harmoniza com Atos 14:11-18, onde lemos que o sacerdote de Júpiter, concorrendo com as “multidões” da cidade de Listra, trouxe “touros” para sacrificar em honra a Paulo e Barnabé (pois os imaginavam deuses “na forma de homens”), só não acontecendo porque ambos terminantemente o impediram. Assim, as carnes oferecidas aos ídolos eram de animais limpos e, portanto, permitidas por Deus.
Poderia o cristão comer dessas carnes provindas do culto pagão? Essa era a dúvida, a qual foi tratada por Paulo com discernimento e equilíbrio. Mas o concílio de Jerusalém (At 15) já não havia deliberado sobre o assunto? O estudo toca esse ponto, lembrando que “alguns cristãos não se incomodavam com isso”, o consumo dessas carnes. Nesse caso, por que Paulo não pôs fim à questão valendo-se da autoridade do concílio para advertir os que comiam?

Entendo que a decisão do concílio a esse respeito foi um tanto emergencial para fazer face a um momento crítico da igreja; conforme ela se desenvolvia, o enfoque foi condicionado a novas situações. Diz o SDABC: “
A decisão foi essencialmente prática. Chegando-se a um maior discernimento teológico, a questão de comer carne oferecida aos ídolos foi mais tarde considerada numa luz um tanto diferente...” (v. 6, p. 311).

Tudo o que o concílio propunha com essa recomendação era que os gentios se abstivessem “
das contaminações dos ídolos” (At 15:20). Portanto, era de se supor que, persistindo o risco de contaminação, a determinação do concílio deveria ser cumprida com precisão; não havendo esse risco, o consumo da carne era facultativo.

Para esse fato concorrem as palavras de 1 Coríntios 8:4 e 7: “
No tocante à comida sacrificada a ídolos, sabemos que o ídolo de si mesmo nada é no mundo, e que não há senão um só Deus... Entretanto, não há esse conhecimento em todos, porque alguns, por efeito da familiaridade até agora com o ídolo, ainda comem dessas cousas como a ele sacrificadas, e a consciência destes, por ser fraca, vem a contaminar-se.”

Observe-se, então, que “
consciência fraca” em 1 Coríntios corresponde à “débil na féem Romanos. Em vez de se valer da força “de lei” de uma decisão conciliar, Paulo apelou para o amor fraternal como motivação maior para o comportamento correto (v. 3, 15), o que era muito mais condizente com sua teologia e argumentação (ver 12:9, 10; 13:8-10).

Por essa razão, aquele que comia não deveria desprezar quem não comia, e este não deveria julgar aquele que comia (v. 3). Os direitos e deveres dos crentes em seu relacionamento mútuo são recíprocos.

II. A medida que vocês usarem
O título da lição de hoje é extraído de Mateus 7:2. “...a medida com que tiverdes medido vos medirão também”, disse Jesus depois de advertir os ouvintes a que não julgassem para que não fossem julgados (v. 1). O mesmo Jesus que nos ensinou a orar pedindo a Deus que nos perdoe “assim como nós temos perdoado” (6:12), assegurou que seremos julgados assim como julgamos. O assunto, portanto, é sério!

Daí a importância da admoestação paulina em Romanos 14. No v. 3, Paulo apelou ao que comia carne sacrificada aos ídolos para que não desprezasse quem não comia, e o acolhesse cordialmente na igreja (v. 1). Isso porque aquele que se sentia em condições de comer era tentado a desprezar em seu coração quem não comia. “Coitado do irmão fulano; ele ainda não é idôneo, pois não se sente capaz de comer sem ser contaminado. É um fraco!”

Naturalmente, tal sentimento era reprovável, e não poderia ocorrer numa igreja movida pelo amor fraternal. Mas, em contrapartida, aquele que não comia era tentado a um comportamento igualmente reprovável, o de julgar o próximo: “Será que esse infeliz não entende que se contamina comendo carne que foi sacrificada aos ídolos? Ele nem deveria se dizer crente, pois é mais pagão do que cristão!”

Para Paulo, o único que tem condições de julgar corretamente é Deus, pois só Ele conhece perfeitamente os propósitos e os sentimentos mais íntimos do coração. E, a exemplo do ensino de Jesus, Paulo estende diante dos leitores a perspectiva do juízo de Deus como razão para não julgarmos o próximo (v. 11, 12). Como o estudo afirma, diante de Deus, “ninguém pode responder por outro. Neste sentido importante, não somos guardiães de nosso irmão.

Quanto à aparentemente difícil expressão do v. 14, “
nenhuma coisa é de si mesmo impura”, acrescento que, a exemplo de Mc 7:15, “nada há fora do homem que, entrando nele, o possa contaminar”, as negativas aí registradas não podem ter sentido absoluto (seria um absurdo se assim fossem); será que nenhuma coisa é impura mesmo? até um corpo em decomposição? ou tais pecados como fornicação, adultério, mentira, furto, homicídio, etc.? E realmente não há nada que entrando pela boca do homem não o venha contaminar? E o que dizer da formicida e outros venenos?

Claro, o sentido das negativas é relativo, e tanto Jesus como Paulo se referiram a coisas lícitas e próprias para o consumo. Mais uma vez, o contexto tem que ser levado em conta. Jesus falava a um grupo de judeus que sabia o que podia e o que não podia comer; e Paulo, como estamos vendo, referia-se à carne sacrificada aos ídolos, próprias, “de si mesma”, para o consumo. Ilustrando: imaginemos um adventista consultando um médico também adventista, que, depois de examiná-lo, lhe diz: “você não tem nada, e pode comer de tudo.” Iríamos imaginar que está sendo dito a um adventista por outro adventista que ele pode comer porco, rato, caranguejo, camarão e coisas afins?

O mesmo sentido relativo deve ser aplicado ao v. 20: “...todas as coisas, na verdade, são limpas...”

III. Não dando motivo para escândalo
Paulo insiste que as atitudes tanto de um grupo como de outro eram simplesmente anticristãs. Desde o v. 1, ele admoesta a ambos os grupos a que tratem cristãmente os elementos do outro grupo, como a seguinte comparação demonstra:
  
Carnes Sacrificadas aos Ídolos
Rm 14
Dever dos que comiam
Dever dos que não comiam
v. 1
Acolher o que não comia
v. 3
Não desprezar o que não come
Não julgar o que come
v.4
“Quem és tu que julgas?”
v. 10
“Por que desprezas o teu irmão?”
 “Por que julgas o teu irmão?”
v. 13
Não por tropeço ou escândalo ao irmão
“Não nos julguemos mais uns aos outros”
v. 15
“Não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu”
v. 20
“Não destruas a obra de Deus por causa da comida”
v. 21
“Bom é não comer carne”
-
v. 22
“A fé que tens, tem-na para ti mesmo”
v. 22
“Bem-aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova”
v. 23
“Aquele que tem dúvidas é condenado se comer”
Rm 15:7
“Acolhei-vos uns aos outros”

Nota-se que esta série de admoestações começa com o apelo a que se acolha “o débil na fé” (o que não comia a carne sacrificada aos ídolos), e conclui com o imperativo do acolhimento recíproco, isto é, ambos os grupos se acolherem mutuamente. Afinal, os que comiam tinham em desapreço os que não comiam, e estes não viam com bons olhos os que comiam.

Há também admoestações próprias para um grupo específico, e outras aplicadas a ambos os grupos. Entendo que “não destruas a obra de Deus por causa da comida” do v. 20, se aplica também aos que não comiam das carnes sacrificadas aos ídolos, pois eles transformavam o “não comer” em matéria de salvação (não estamos nós no mesmo perigo com a nossa mensagem de saúde?), o que era um absurdo. Da mesma forma, entendo que, no v. 22, Paulo se dirige a ambos os grupos, lembrando-os que assuntos de consciência são sagrados, e que devem ser respeitados; e esse respeito deve partir do próprio possuidor da consciência, como Paulo disse: “Aquele que tem dúvidas é condenado se comer”.

Mas se, por um lado, assuntos de consciência precisam ser respeitados, por outro lado, não se pode impô-los a terceiros, que não os compreendem do mesmo ponto de vista; portanto, a consciência de A não pode servir de padrão para a consciência de B.

Daí o apóstolo afirmar que “
a fé que tens, tem-na para ti mesmo” (isto é, não imponhas a outrem aquilo que achas ser um dever para ti) e “bem-aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova” (isto é, estejas seguro de que o que crês não seja pura fantasia e, o que é pior, desaprovada por Deus). Lembremos de que o apóstolo não está se referindo a verdades fundamentais, estabelecidas num claro “assim diz o Senhor”, porém a matérias de mera convicção pessoal.

Mas é inegável que os que comiam das carnes sacrificadas aos ídolos expunham-se a incorrer numa falta ainda mais grave: servir de pedra de tropeço, dando, a alguém, motivo de escândalo. No v. 13, o apóstolo requer do cristão o propósito de não servir de “tropeço ou escândalo” a ninguém. Ele reitera esse imperativo nos versos seguintes, lembrando que não devemos, por causa do que comemos, contribuir para a perdição de quem quer que seja (v. 15), nem destruir a obra de Deus, comendo com escândalo (v. 20).

Quanto a esse ponto, Paulo é mais explícito na primeira epístola aos Coríntios. A lição nos remete a 8:12 e 13, que cada aluno da Escola Sabatina deveria ler e considerar. A verdade é que aqueles que se sentiam na liberdade de comer das carnes sacrificadas aos ídolos poderiam fazê-lo em detrimento da fé daqueles que nutriam escrúpulos para não comer. Estes eram ainda débeis na fé por se sentirem incapazes de não se influenciar pela sedução do paganismo, caso comessem daquelas carnes. Então, o “forte na fé” poderia, por seu ato de comer, estimular o “fraco” a fazer o mesmo, o que o levaria e se contaminar. Agindo assim, ele fazia perecer “o irmão fraco, pelo qual Cristo morreu” (v. 11).

Daí Paulo apelar aos “fortes” para que fossem idôneos no uso da liberdade que tinham de comer aquela carne. “
Vede, porém, que essa liberdade não venha de algum modo a ser tropeço para os fracos” (v. 9). É nesse contexto que precisamos entender o que foi escrito em Romanos 14:21, “É bom não comer carne...” Ele não está dizendo que é bom para a saúde não comer carne; isso é correto, mas não é o que está sendo aqui declarado. É bom não comer a carne sacrificada aos ídolos, porque isso eventualmente levaria um companheiro de fé a se escandalizar e, consequentemente, a se perder.

Não poderiam os ASDs incorrer no mesmo problema, não somente com respeito aos princípios alimentares por nós sustentados, mas em relação a qualquer posição que adotamos?

IV. Observância de dias
O estudo de hoje trata da segunda questão que provocava discórdia na congregação romana: a observância de certos dias tidos como sagrados pelos cristãos de mentalidade judia (Rm 14:5). Paulo deixou entrever que isso não era decisivo para a salvação, e que, portanto, não deveria ser imposto àqueles que não se coadunavam com tal prática. Não fazia qualquer diferença se alguém tivesse a prática em apreço ou não; o importante era que cada um tivesse “opinião bem definida em sua própria mente”.

O último parágrafo do comentário do estudo apresenta a seguinte razão para Paulo, ao deixar como opcional o acatamento por aqueles dias, não estar se referindo à guarda do sábado: o fato de ele enfatizar a observância da lei. Não seria então agora que iria desmerecer um dos Dez Mandamentos.

Além disso, como bem se observa no texto de Romanos, Paulo foi sempre cioso em se defender da acusação de antinomismo, de ser contrário à lei, e não poderia estar sendo incoerente aqui, ratificando a acusação que os adversários levantavam contra ele. Ajunte-se a isto o fato de ter sido Paulo um fiel observador do sábado (ver At 13:14, 44; 16:13; 17:1, 2; 18:4).

Na verdade, desde os primórdios da igreja, os cristãos judaizantes impuseram aos gentios conversos determinadas práticas que não tinham mais razão de ser. Essas práticas estavam prescritas “na lei de Moisés” (At 15:5), a qual não deve ser confundida com o Decálogo, sempre identificado nas Escrituras como “lei de Deus”. Portanto, não era ao sábado semanal, estabelecido como dia de repouso e santificação no decálogo, que Paulo se referia nesse texto de Romanos, mas aos sábados cerimoniais prescritos na “lei de Moisés”.

E que sábados são esses? Aqueles vinculados às festas do ano litúrgico dos hebreus. A Páscoa marcava a abertura destas festas como prescritas em Levítico 23; do v. 4 em diante, podem-se estabelecer sete festas e sete sábados cerimoniais, assim chamados de “sábado” porque eram dias de descanso:

7 FESTAS
DATA
LEV 23:
7 SÁBADOS CERIMONIAIS
(1) Páscoa
14 de Nisan
5
(1) 15 de Nisan
(2) Pães Asmos
15 a 21 de Nisan
6-8
(2) 21 de Nisan
(3) Primícias
16 de Nisan
10-14
             –
(4) Pentecostes
6 de Sivan
15-21
(3) 6 de Sivan
(5) Trombetas
1º de Tishri
24, 25
(4) 1º de Tishri
(6) Expiação
10 de Tishri
27-32
(5) 10 de Tishri
(7) Tabernáculos
15 a 21 de Tishri
34, 35; 39, 40
(6) 15 de Tishri
36, 39
(7) 22 de Tishri

Nisan era o primeiro mês do ano, Sivan, o terceiro, e Tishri, o sétimo. As quatro primeiras festas eram as da primavera, enquanto as três últimas eram as do outono. Estas demarcavam quatro sábados cerimoniais, o último dos quais ocorria no dia seguinte aos sete dias da festa dos Tabernáculos. O dia da Páscoa não era um sábado cerimonial; este recaía no dia seguinte, que era o primeiro dos Asmos. Outra festa que não demarcava um sábado cerimonial era Primícias, que no ano em que Jesus morreu recaiu num domingo, o da ressurreição. O dia em que Jesus passou na sepultura foi chamado de “sábado grande” (Jo 19:31), porque nesse dia dois sábados coincidiram: o semanal e o cerimonial por ser o primeiro dia dos asmos, 15 de Nisan.

Assim, ficavam estabelecidos no transcurso do ano sete sábados cerimoniais, que deveriam ser observados “além dos sábados do Senhor” (Lv 23:38), aqueles que, também durante o ano, ocorriam ao sétimo dia de cada semana. Estes sábados cerimoniais, tanto quanto outras prescrições do cerimonialismo hebreu, caducaram com o sacrifício de Jesus (Ef 2:15; Cl 2:17; ver também Os 2:11), de forma que a celebração deles ficava facultada ao cristão judeu apenas do ponto de vista étnico, não devendo ser imposta ao cristão gentio. Daí Paulo afirmar aos membros da igreja de Colossos: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida [claro, as comidas e bebidas ligadas às festas litúrgicas], ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados” (Cl 2:16).

Da mesma forma que o elemento judaizante, lá na congregação de Roma, “julgava” aquele que comia da carne sacrificada ao ídolo, e Paulo advertiu que não se fizesse tal julgamento (Rm 14:3 e 4), aos de Colossos ele lembrou que ninguém os julgasse por não observar aqueles sábados cerimoniais, por assim não fazerem “diferença entre dia e dia”, mas julgando “iguais todos os dias” (v. 5).
V. Bênção de conclusão
Chegamos ao fim da Epístola aos Romanos, mas de forma alguma esgotamos o estudo dessa obra magistral da pena de Paulo. Seu campo de aprendizado é infinito, pois trata, acima de tudo, do plano de redenção, fundamentado no amor que não tem limite, o de Deus.

Na primeira parte de Romanos 15, Paulo continuou com sua exortação (v. 1-7), tomando agora o comportamento de Cristo como exemplo máximo do relacionamento humano; as expressões “também Cristo” (v. 3), “segundo Jesus Cristo” (v. 5), e “como também Cristo” (v. 7) não deixam dúvida a respeito. Afinal, era Cristo o “ministro” tanto dos judeus (v. 8), como dos gentios (v. 9-12), os dois grupos que compunham a igreja.
Ele começa apelando aos crentes a que não se agradem a si mesmos. Aparentemente, o apóstolo se dirige aos cristãos gentios no v. 1, mas, no 2, ele expande o quadro, incluindo a todos. “Cada um” deve agradar ao próximo “no que é bom para edificação.” Portanto, não é o caso de sermos meramente “bonzinhos”, mas sempre agir para o crescimento espiritual do próximo e sua salvação, o que às vezes requererá até mesmo uma atitude mais vigorosa, por exemplo, num aconselhamento, ou numa tomada de posição em favor do que é correto.

Tudo, porém, tem que ser feito com mansidão, bondade e amor, a exemplo de como Cristo agia; tão associado ao Pai estava, que os ultrajes dirigidos a Deus recaíam sobre Ele (v. 3); assim também nós, em nosso companheirismo cristão, nos associaremos uns aos outros de forma tal que, estimulados à mais plena empatia, nos identificaremos com os dissabores e reveses de nossos irmãos. Paulo já havia tocado nesse ponto ao usar o corpo humano como ilustração da igreja (12:4, 5; ver também 1Co 12:12-27). “
De maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele; e se um deles é honrado, com ele todos se regozijam.” (v. 26).

Tomando o exemplo de Cristo, Paulo mostra que uma atitude semelhante à dEle é o verdadeiro cumprimento da lei, exposta no v. 4 como “tudo quanto outrora foi escrito” e que é “para o nosso ensino”. Ele fala da “paciência” e “consolação” das Escrituras como fonte de “esperança”. Como a lição explica, paciência significa “fortaleza”, “firme resistência” (etimologicamente encerra o sentido de sustentáculo); e consolação “encorajamento”.

Tudo isto está contido nas Escrituras porque elas são um reflexo dAquele que as criou: o Deus de paciência e consolação (v. 5), e “da esperança” (v. 13). Ele é o “Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, a quem devemos glorificar (v. 6). Certamente, Jesus também é o Deus das Escrituras (ver Jo 5:39), pois Ele é “a expressão exata do seu Ser” (Hb 1:3; ver também Jo 14:9); assim também é o Espírito Santo (Rm 15:13), o “outro Consolador” (Jo 14:16), o Agente sob cuja inspiração elas foram produzidas (2Pd 1:21; 2Tm 3:16).

O v. 13 encerra potencialmente a epístola. O que vem em seguida poderia ser considerado adendo ao corpo principal do documento:

Adendo I: Os Planos de Paulo (15:14-33). Ele começa reconhecendo os valores espirituais de seus leitores (v. 14), para lhes expor sua disposição de continuar pregando entre os gentios (v. 16) com o mesmo ímpeto e sob o mesmo poder como até ali trabalhara (v. 17-19). Seu desejo era atuar em território virgem (v. 20 e 22), e seu alvo era atingir a Espanha, o extremo ocidente na época; para tudo isso contava com o apoio deles (v. 24, 28).

Mas, antes, teria que ir a Jerusalém “a serviço dos santos” (v. 25); ele estava consciente dos riscos desta viagem, e pleiteou pela solidariedade dos crentes romanos no sentido de que lutassem com ele em “orações a Deus” em seu favor, para que ficasse a salvo dos percalços impostos por adversários (v. 30 e 31). Visitaria os romanos, então, “na plenitude da bênção de Cristo” (v. 29; também v. 22, 23 e 32).

Adendo II: As saudações pessoais de Paulo (16:1-20). Ele também aqui reconhece os valores espirituais dos cristãos de Roma (v. 19).
Embora não fosse ele o fundador daquela igreja, e nem mesmo a conhecesse, não significa que nela não existissem amigos e conhecidos, seus filhos na fé que haviam se transferido para Roma, entre eles Priscila e Áquila, e Epêneto (v. 3-6). Referências assim tão específicas seriam mais próprias para uma comunidade desconhecida.

Paulo insere neste adendo aquela que poderia ser considerada sua última exortação, a qual pode muito bem estar vinculada à questão das acusações que eram feitas contra ele: “Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porque esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e, sim, a seu próprio ventre; e com suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos... Quero que sejais sábios para o bem e símplices para o mal” (v. 17, 18 e 24). Quão atual é essa advertência, agora quando dissidências estão na ordem do dia.

Adendo III: As saudações de terceiros e a doxologia conclusiva (16:21-27). O apóstolo transmite as saudações que membros de outras comunidades, principalmente Corinto, enviavam aos cristãos de Roma: Timóteo, cooperador de Paulo; Lúcio, Jason e Sosípatro, considerados “meus parentes”, no sentido, talvez, de “compatriotas” como no v. 7; Tércio, o secretário de Paulo; Gaio, seu anfitrião em Corinto; Erasto, o tesoureiro da cidade (naturalmente ele havia se convertido também pelo trabalho de Paulo); e “o irmão Quarto”, provavelmente outro membro da igreja de Corinto. É bonito e significativo esse exercício de sociabilidade e cordialidade entre os seguidores de Jesus.

Quanto à doxologia final (v. 25-27) três pontos merecem destaque:

(1) “
Deus é poderoso para vos confirmar” (v. 25) – Nossa firmeza na fé e permanência em fidelidade até o fim não se estribam em nossos recursos, mas no poder de Deus. Em comunhão com Ele prosseguiremos vitoriosos até o encontro com Jesus;

(2) “... revelação do mistério guardado em silêncio nos tempos eternos” (v. 25) – O plano da redenção não foi formulado emergencialmente quando o pecado surgiu. É tão eterno quanto Deus, pois nunca houve um tempo em que Ele não desejasse salvar;

(3)
“... dado a conhecer por meio das Escrituras proféticas” (v. 26) – Mais uma vez, Paulo chama a atenção para o valor normativo das Escrituras, ele que citou frequentemente o Antigo Testamento em sua epístola. Aqui, todavia, ele especifica que qualidade das Escrituras proveu o conhecimento do “mistério guardado em silêncio”. Embora toda a Bíblia seja de natureza profética, havemos de convir que particularmente suas profecias anteciparam a salvação por vir, incluindo aquelas na forma de tipos e símbolos ligados especialmente, mas não exclusivamente, ao ministério do santuário terrestre.

O teor básico de qualquer profecia bíblica é o plano da redenção; portanto, profecia e evangelho se harmonizam; não formam uma dicotomia, mas uma unidade. Não há incompatibilidade alguma entre ambos, pois enquanto profecia é o evangelho prenunciado, o evangelho é a profecia comprovada.

Implicação desse fato para os ASDs: como movimento, temos a cumprir uma missão profética, mas, como igreja, jamais renunciemos nosso cunho evangélico. Faltando a primeira condição, faremos parte do senso comum, não indo além do habitual: apenas uma agremiação religiosa entre outras. E se faltar a segunda, não passaremos de um movimento apocalíptico, não mais que exclusivista e inconseqüente.

Última Consideração

Concluindo o corpo principal da epístola e o primeiro e segundo adendos, o apóstolo invoca uma bênção aos leitores. São três bênçãos que falam de esperança, gozo, paz e graça, e se mesclam em apenas uma, “apropriada”, como diz a lição, “em uma carta cujo tema dominante é a justiça pela fé! Encorajamento, esperança e paz! Como nosso mundo presente precisa dessas coisas!” E eu ajunto: o mundo só as terá quando desfrutar a experiência de salvação apresentada em Romanos.

Previamente à bênção de 16:20, Paulo assegurou aos crentes de Roma que, pela fidelidade de Deus, a vitória final lhes estava assegurada: “E o Deus de paz em breve esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás.” Que promessa!

Seria ela apenas para aqueles cristãos? É claro que não. A primeira profecia da Bíblia está sendo aqui evocada, Gn 3:15 – o descendente da mulher (Cristo) tendo Seu calcanhar ferido, mas esmagando a cabeça da serpente. Essa vitória ocorreu na cruz, onde o Senhor Jesus triunfou sobre “
principados e potestades” (Cl 2:15); e se a vitória é de Jesus, então ela pertence a todos nós. Se nEle exercemos fé, a experiência dEle é a nossa experiência. Queira Deus que esse “em breve” se cumpra logo.

Louvado seja o Seu nome. Amém!




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